Não é necessário estar muito atento às notícias para entender que assistimos hoje ao ressurgimento de uma nova vaga de terrorismo jihadista na Europa. Em França há decapitações na via pública por via de um professor ter mostrado caricaturas de Maomé numa aula sobre liberdade de expressão. Na Áustria um homem passeia-se por Viena com armamento de guerra matando tudo quanto encontra. Assim estamos, mais uma vez.
Movimentos jihadistas radicais estão a tirar partido da frágil situação dos países europeus que, aos poucos, se voltam a fechar em virtude da segunda vaga pandémica, para voltar a levar a cabo acções terroristas em território europeu. O momento não poderia ser o mais conveniente para estes movimentos, numa Europa a meio gás, com os sistemas de saúde no limite, muitos recursos retirados de determinados sectores para serem aplicados na emergência de saúde pública e investigação científica, e com uma sociedade exausta, impaciente e mentalmente desgastada, o impacto destas acções em momentos como o actual geram sempre uma maior perturbação social.
O caso mais gritante é sem dúvida o caso do professor Samuel Paty que, numa aula de história e geografia, cujo tema assentava sobre a liberdade de expressão, fez uso de algumas das polémicas caricaturas de Maomé de maneira a exemplificar que a liberdade de não acreditar numa causa, em democracia, é tão legítima como a liberdade de acreditar, assim como, a liberdade de criticar ou defender, de opinar ou não opinar, de fazer observações ou não fazer, seja qual for o risco de poder ofender um grupo social ou um indivíduo. Foi precisamente o sentimento de ofensa que levou à decapitação de um homem em plena via pública à luz do dia num país da Europa.
A hipersensibilidade e vitimização constantes de determinados grupos sociais nunca será um factor pacificador nem de reunião de consensos, será sempre o contrário, e esta situação é dos exemplos mais extremos possíveis de identificar disso mesmo.
Há, na Europa, diversas comunidades que vivem entre nós mas não comungam dos nossos valores de liberdade, tolerância e democracia. Comunidades que criam os seus filhos num ambiente familiar que despreza a nossa forma de vida, que os doutrina a não se deixarem envolver e assimilar à sociedade que os acolhe. É certo que grande parte dos países europeus não está isento de culpas no que diz respeito à má integração de determinadas comunidades, criando ao longo de décadas ou séculos (dependendo dos casos) autênticos guetos sociais que geram problemas de marginalização, ao invés de dissolver estas mesmas comunidades na sociedade por intermédio de políticas públicas. Porém, o problema tornou-se num monstro, e neste momento, nenhuma das partes está isenta de responsabilidades.
Os países europeus e a União Europeia em geral, desconsideraram totalmente nas ultimas décadas que é necessário que exista um projecto de consolidação civilizacional com base nos valores comuns dos europeus. Um projecto que incuta o enaltecimento dos valores do dever do cidadão perante o Estado, do humanismo e universalismo característicos dos povos europeus, dos valores da democracia, da liberdade e do Estado de direito.
Há algumas semanas, estourou a polémica por via da existência de uma disciplina de Cidadania nos programas escolares, que motivou celeuma e sentimentos feridos de hipersensibilidade por parte de umas determinadas falanges da sociedade portuguesa, que considera que os seus filhos (coitados) não podem ser expostos a tentativas de doutrinação de qualquer espécie perpetuada pela escola, quando muitos desses pais provavelmente não fazem ideia de que companhias se rodeiam os seus filhos, quem são os seus amigos, e de que modo é que esse círculo os doutrina e influencia. Para estes pais, os seus filhos não podem ser vítimas de opinião diferente, de contraponto, nem que seja por parte do próprio Estado.
É imperativo colocar esta questão ao leitor. Serão estes pais diferentes, na sua forma de actuar, dos pais das comunidades muçulmanas francesas radicalizadas?
Não. São iguais, mas em realidades diferentes. Ambos não toleram que os seus filhos sejam expostos a doutrinas com as quais, os pais, não concordem, e ambos não toleram que os seus filhos sejam expostos ao diferente, ao contraponto, à divergência e à heterogeneidade. Em suma, à democracia na sua essência.
A educação para a Cidadania é o primeiro passo para a harmonização das instabilidades de uma sociedade. É o que incute os valores basilares de uma sociedade a um jovem que por algum motivo, possa não ter tido acesso a eles no seu seio familiar, seja por ter uma família originária de outra cultura, seja por ter uma família desinteressada ou alheada de determinados valores civilizacionais que nos pertencem, seja por ter uma família que é contra os valores da sociedade que os acolhe.
A Cidadania, como a recruta militar, é igual para todos, ricos, pobres, altos, baixos, inteligentes, leigos, aristocratas e humildes. Todos têm a obrigação moral de saber porque existem e como funcionam as instituições de participação democrática, os direitos humanos, a diversidade cultural e religiosa, a liberdade de expressão e de opinião, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e de saúde, igualdade de género, liberdade e educação sexual, segurança rodoviária, literacia financeira e educação para o consumo, entre muitos outros temas.
A Cidadania é a vitamina C de uma sociedade. Sem ela propaga-se o escorbuto social, onde o corpo da sociedade se desintegra internamente, até que, por fim, se esvai em hemorragias fatais.
Casa comum, valores comuns, regras comuns.
Combinação que sempre funcionou.