30 Setembro 2017      11:48

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DAR UMA MÃOZINHA

"PARALELO 39N"

Entusiasmado por andar a trabalhar no campo e na lavoura, Antímio esforçava-se todos os dias, do nascer ao pôr-do-sol. Sabia o que custava andar de camisa suada, sabia o que custava beber água tépida para matar a sede. No meio dos torrões secos dos campos, era preciso ajeitar a terra e preparar aquela que viria a ser a cama das sementes para nascerem logo a seguir.

Antímio, trabalhador do campo e apicultor, sabia que o seu trabalho não era notado, mas crescia nele uma vontade de fazer melhor quando se sentava debaixo de uma azinheira a mastigar um pedaço de toucinho, amarelo do sal. Antímio fazia-me lembrar um tronco de sobreiro meio seco. O corpo curvado, escuro, empoeirado era como se o pó passasse por ele e se tornasse parte de si. O chapéu também fazia parte do tronco seco que era o trabalhador.

Sentado debaixo da azinheira, como se fosse uma extensão dela, o homem matutava nas coisas do dia-a-dia. Não matutava em tudo, porque não conhecia tudo. Conhecia o que eram sementes, o que eram torrões, o que eram tratores e debulhadoras, enfardadeiras, enxadas, alferces e pás. Até um ancinho ele sabia o que era. Cá outras coisas não sabia. Continuava sentado debaixo da sombra, parte da sombra.

A história de Antímio era esta, mais ou menos. Começou nesse dia, em que o pensamento divagou e viu um elefante numa nuvem. Nunca tinha visto um elefante, mas imaginou que fosse um animal esquisito. Era mesmo. E a partir daí os dias começaram a ser eles também estranhos. No dia seguinte voltou ao trabalho bem cedo, ainda antes de o sol nascer e começou a despedaçar os torrões da terra como quem parte corações. Nunca tinha tido jeito para o amor, este Antímio, nunca se tinha interessado por nada destas coisas. Era útil e altruísta. Gostava de ajudar todos e sabia ajudar bem, sem ter um critério de apoio. Às vezes, as pessoas abusavam. Outras vezes não abusavam. Às vezes apareciam elefantes nas nuvens, outras vezes não aparecia nada.

Nesse dia, em que o calor estava mais quente do que o costume, o homem estava mal disposto. Tinha acordado com os humores virados ao contrário, não tinha comido nada de manhã e de estômago vazio não havia altruísmo que durasse mais do que uns segundos. Nesse dia, estava muito mal disposto. Andava com os azeites. No campo, as máquinas a deitar fumo, as coisas a andar cada vez mais devagar, à medida que o meio-dia se aproximava. Os companheiros de trabalho começavam, como todos os dias até esse, a pedir ajuda e apoio ao Antímio. Ó Antímio, dá aí uma mãozinha, empresta aí uma mão, preciso de uma mãozinha.

Naquele dia, Antímio estava com os azeites e sem paciência para pedidos que não cessavam. Irado como nunca ninguém o tinha visto, largou o arado no meio do campo e desapareceu atrás de uma azinheira, evadindo-se, tendo passado a fazer parte dela. Ninguém o viu mais naquela manhã. Olharam todos uns para os outros mas ninguém mais o viu.

A meio da jorna, sentaram-se todos para comer debaixo das árvores escassas que por ali havia. Todos menos o Antímio que, fomos descobrir através do elefante que aparecera no céu, estava na arramada da casa, onde guardava a cera e os potes de mel que todos os anos fazia. Via-se lá de cima que o homem tinha andado a matutar em qualquer coisa. Aproximando mais a vista, via-se que tinha feito, em madeira de azinho uns moldes tal e qual a pequenas mãos. Enchia vorazmente cada um deles com cera quente. Deviam ser aí uns vinte. Encheu todos até que secaram com o tempo. Usando a pouca paciência que tinha naquele dia, agarrou nas vinte mãos de cera, pô-las todas numa saca de serapilheira e voltou ao corte de trabalho. Os outros viram-no aproximar e começaram a dizer, olha voltou, o amuado. Antímio, irado, começou a tirar mãos de cera da saca e a atirar aos companheiros, dizendo, ah queres uma mãozinha, toma lá uma mãozinha, ora mais uma e outra. Cada um fugiu para seu lado e Antímio, ainda muito alterado, lá seguiu caminho, atrás da nuvem que parecia um elefante, balbuciando dá uma mãozinha, toma lá. Queres, ora tens. E foi aí que surgiu a expressão, dar uma mãozinha, e já agora, estar com os azeites também começou nesse dia.   

 

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