28 Outubro 2017      09:04

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DAR ÁGUA PELA BARBA

"PARALELO 39N"

Os rios são fronteiras naturais que nos impedem de chegar ao outro lado se não tivermos barco. Os rios são linhas que se curvam e descurvam na longitude e latitude da geografia, da terra, das coisas e do ser humano. Havia um rio que começava numa nascente e crescia, em gradação, do sul para o norte, em claro desafio das leis da física. Não era o único, mas era aquele que ficava perto da povoação de Cortes. Era um rio grande já quando se encontrava com o homem. Era um rio encorpado onde viviam peixes, plantas aquáticas e tantas outras coisas nas suas margens.

O rio tinha nome, era assim chamado pelos homens. Assim como? Como o nome que era dado ao rio, assim. Assim só? Só. Transportava-se a si, aos peixes, às plantas e dava ainda espaço para que à tona, flutuassem nenúfares, ora solitários, ora acompanhados. Esta é, no fundo, uma história de solidão e de coisas e pessoas sozinhas. O rio era só, os nenúfares e os homens viviam sozinhos.

Sozinho vivia este homem que não se conhecia. Fazia companhia ao rio, olhando-o nos olhos. Quando chegava mais perto, via-se a si próprio refletido nas águas verdes. Chamava-se Solménio, nome dado pela madrinha, inspirado no Sol, cujo nome em si tinha sido dado por causa da solidão em que vive a estrela com o mesmo nome e em homenagem a Timénio, avô da madrinha. Ninguém achava o nome estranho. As coisas só são estranhas quando, em convenções sociais toda a gente as decide achar estranhas. Há, pese embora este argumento valer para muito, outras que são mesmo estranhas e ponto.

Solménio era estranho às pessoas que viviam do lado de lá do rio e as pessoas que viviam assim, do lado de Assim. Agora podia até brincar com o nome do rio, que é coisa séria, e dizer que do lá de assim, vivia a Família Assado, os Assim Assado. Teria piada, mas não vou fazer.

Do lado de lá vivia então essa família que nunca tinha contactado com a família do lado de cá. Viam-se ao longe, gritavam de ora em vez, quando havia uma coisa mais urgente mas não havia forma de se alcançarem. Tinham uma filha por quem Solménio se apaixonou de imediato, a Ilda Assado. Gritavam um ao outro, se casassem gritariam um com o outro, mas a distância neste caso específico não dava.

Solménio tinha barbas enormes, tão maiores do que o próprio cabelo que faziam impressão a quem as via. Na aldeia onde morava já nem era assim tanto pois já todos o conheciam e já era normal. Se as tirasse faria diferença. Do outro lado, quando olhava, Ilda conhecia-o pelas barbas e gritava na sua direção. Nas suas trocas de amor secretas que toda a gente conseguia ouvir, o pretendente do lado de cá prometia atravessar o rio, nem que fosse a nado. E gritava ela, não venhas, não venhas que te dá água pela barba.

Ele desanimava-se cada vez que ela lhe dizia isso. Parecia má vontade. Os outros ouviam e riam-se. Achavam graça à expressão. Tanta graça que me atrevo a dizer que podia facilmente passar a ser um dito popular quando alguma coisa não corre bem e dá muitas dificuldades em ultrapassar. Neste caso específico era literal. Se o apaixonado louco se tentasse meter rio adentro, aquilo ia mesmo dar água pela barba.

Pensou então em várias soluções. Esqueci-me anteriormente de vos dizer que Solménio era um inventor. Inventava tudo. Nunca se tinha lembrado de inventar um barco para atravessar o rio, ou construir uma ponte para todos começarem a passar de um lado para o outro do rio assim, que é uma fronteira natural que separa as pessoas e as torna sozinhas.

Das várias soluções que Solménio ponderou, uma delas foi arranjar uma coisa que voasse e chegasse ao outro lado e voltasse. Tinha visto os pássaros e as abelhas e as borboletas e imaginava umas asas para ir buscar a Ilda. Ora, por que razão não tinha pensado num barco? Bem, talvez nunca tivesse falado com os peixes e os pássaros via que chegavam e voltavam. Peixe não tinha visto nenhum a saltar livremente para a margem. Solménio inventou uma maquineta em madeira e pano cru que abanava e lançou-se para chegar ao lado de lá. Confiante, batendo os braços que já pareciam mais asas, com força e, num golpe de asa, saiu de terra. Sorriu e, no preciso momento que sorria, caiu. Esqueceu-se de bater as asas. Arriou, sim, porque caiu dentro do rio. Mesmo não querendo, ficou com água pela barba.

A sua aldeia e a de Ilda riam até chorar, como chorava Ilda, mas por outras razões. O pobre Solménio chorava, embora molhado não se lhe vissem as lágrimas. Teria de continuar a pensar em qualquer coisa que lhe desse água pela barba e que o aproximasse da outra metade da solidão.

 

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