14 Setembro 2019      20:15

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Da existência de um crime… A Song of Innocence in a dreamland

William Blake – Songs of Innocence:

A Cradle Song

‘Sweet dreams, form a shade

O’er my lovely infant’s head

Sweet dreams of pleasant streams

By happy, silent, moony beams.

Sweet smiles, in the night

Hover over my delight;

Sweet smiles, mother’s smiles,

All the livelong night beguiles.

…’

-

Todas as épocas marcantes têm momentos que as definem. E quanto ao século XXI, o ainda jovem século das Redes Sociais, enfim, todos os instantes são ou sonham-se relevantes. Contudo, por uma questão de ordenação, digamos que houve quatro que prevalecem sobre todos os outros (América, América…): o 11 de Setembro, a crise de 2008, e as eleições de Obama e Trump.

Sendo que a eleição de Trump é, com toda a probabilidade, aquele que mais pode influir nas condições de vida futuras.

Nesse dia de profundo desespero, a expressão que primeiro ecoou na minha pobre e estarrecida mente, e que em seguida desceu ao cerebelo fazendo-me cair para trás – por outras palavras, quando a visão do futuro se tornou no inferno do real; privilégio do sapiens sapiens que, por conseguir fazer assim, se distancia de si próprio, distanciando-se ao mesmo tempo da Natureza –, foi ‘crime contra a humanidade’. Expressão que nunca abandonei e que nunca me abandonou, apesar de alguns avisos e outras tantas adversativas. Afinal, tenho bons amigos. Os melhores que alguém pode ter.

Vamos lá, haverá alguém capaz de negar que o crime Nazi começou com as duas eleições parlamentares sucessivas que o partido de Hitler ganhou livremente (a terceira e quarta já não contam como livres)? Não, e não porque ele limitou-se a fazer tudo o que antes ameaçava. Então, porque há-de ser diferente com o infantiloide platinado? Fartou-se de prometer, e valha a verdade que tudo tem feito para cumprir. Tanto num caso como noutro, se algo de sincero sobressai da miséria moral e espiritual que representam /representaram, é que a única verdade que proferiram foi precisamente a verdade da sua moral. Não há um único votante, valor absoluto zero, que possa dizer que escolheu em ambos os casos com base num logro.

Mas que crime é este? Pode alguém ser pronunciado culpado por ter votado livremente – apenas porque optou por um em prol de outro(s)? Digamos que não, que evidentemente não pode. E digamos que sim, que é culpado de um crime, assumindo os riscos colossais dessa tomada de posição.

É um crime peculiar, único em certo sentido, e deve ser tratado em todas as circunstâncias como tal. Crime em que a culpa é difusa e que, se olhada em sentido estrito, vive paredes-meias com o delito de opinião, o que é viver perigosamente. Por conseguinte, quem o cometeu não poderá jamais ser levado a tribunal. Tendo votado livremente, também votou secretamente, pelo que, assuma ou não o sentido do seu voto após a eleição, não pode de modo algum ser citado socialmente pelo seu acto. Logo, para evitar imoderações, os media, e em especial a televisão, devem abster-se de se referir a esse crime como crime. Melhor, que o ignorem e deixem esse trabalho para o cidadão-comum (que não deve, em nenhuma ocasião, ser confundido com o seu complemento mítico, o cidadão-modelo; aquele que, entre outros, ajuda a eleger e a manter tipos como Hitler e Trump).

O cidadão-comum, no auge do desconforto perante si próprio (ser-reflexo que antes apenas entrevia de relance e agora vê num máximo de nitidez, inevitavelmente como incompleto), tenta perceber o que aconteceu e não compreende. Percebe a necessidade de ter mais informação, dá os primeiros passos, simplesmente metendo a mão no bolso e retirando o telemóvel. Então toca numas quantas teclas e…embate numa parede intransponível chamada social media. Estranha impressão: dois extremos que se afastam irremediavelmente, energia escura que ainda não compreende, constante cosmológica que intui sem lhe dar designação: ou opiniões que o repugnam absolutamente, ou beijos dados por estranhos na sua fronte que o deixam visivelmente incomodado.

Quer mais, quer desassossego, e certo dia, ao passar por uma das duas livrarias que restam na grande cidade, vê um título longo na montra que mais não é do que o seu recente anseio tornado evento táctil: O Livro do Desassossego / Composto por Bernardo Soares / Ajudante de Guarda-Livros na Cidade de Lisboa. É o início de um caminho movediço que passa por todo o lado, até pelas regiões fronteiras das profundezas inatingíveis.

Desse livro, surgem outros, e depois outros, até que percebe a dimensão do crime cometido naquela já longínqua eleição. Três anos que parecem trinta. Crime que então vai denunciar no que tem de concreto, houve uma eleição ganha por um demente em circunstâncias extraordinárias, resumindo a culpa num ‘não pode voltar a acontecer’ que iliba o cidadão-modelo, na expectativa séria de lhe devolver o sentido de responsabilidade. Também apanágio do sapiens. Esperança que também é sua, isto é, que os outros, os que deveriam ter sido eleitos, tenham aprendido a lição.      

 

Imagem de Trump de timedotcom.files.wordpress.com

Imagem “Urizen” de William Blake de wikimedia.org