18 Maio 2020      13:29

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Crónicas de um médico italiano: Porosidade perigosa na fronteira

Há dias em que este tipo muito parecido comigo, que vive no meu espelho quando estou em casa, realmente me deixa enervado. Ele sabe perfeitamente que argumentos destacar no que eu não gosto de ver e faz-me dizer – talvez apenas por despeito - o que eu detesto ouvir. Ele também me faz perguntas e lança enigmas que eu deveria saber dar resposta, mas que não me ocorrem no momento. Outras vezes, no entanto, faz-me descobrir ou relembrar coisas engraçadas. Nesse caso, saio para a rua com um sorriso no rosto, o que talvez faça meus vizinhos pensar que minha noiva Manuela tenha sido muito gentil comigo. Hoje entrámos com o pé esquerdo um com o outro, no entanto, depois de alguma troca de argumentos, encerrámos o assunto pacificamente:

Espelho- Bom dia. Deves aparar a barba o mais rápido possível, porque estás realmente com mau aspeto.

Eu- Bom dia. A quem pensas tu estar a dar ordens logo de manhã?

Espelho- Vamos começar bem! Gostaria de salientar que nossa a união quiral é equimolar e que, porque tu és meu enantiómero, desfrutamos de direitos iguais - portanto, de igual respeitabilidade e autoridade.

Eu- Bem, caro Sr. Engenheiro Químico, não te entusiasmes com o facto de pensar que desconheço essas palavras difíceis: elas simplesmente confirmam vindas de ti que és apenas um isómero ótico banal de mim mesmo. Escolhe se preferes ser hoje o Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro ou Bernardo Soares: como preferires.

Espelho- Uma proposta generosa, no entanto quem sabe quando entenderás - ou melhor - quando decidirás aceitar - que o vidro do espelho não é apenas o lugar de uma paisagem vista ou imaginada, uma tela de cinema cheia de imagens alheias? Em vez disso, deves compreender que é apenas a fronteira muito porosa e fugaz entre como nos sentimos que somos e como nos vemos como estamos, ou - às vezes - como gostaríamos de ser.  Então ficará claro para ti que não existe uma quantidade maior de verdade de um lado ou de outro do espelho; não há homens verdadeiros ali e heterónimos aqui. Simplesmente enantiómeros.

Eu- Os dois lugares estão ligados?

Espelho- Sim, porque na verdade não são lugares, e podes mudar de um para outro sob certas condições.

Eu- Palavras fascinantes, mas sem verdade científica. O que dizes não se aplica aos cegos e não acontece se não houver luz. Portanto, não há provas de que seja uma verdade geral e universal.

Espelho - Alguns são sempre cegos e, quando não há luz, somos todos igualmente cegos; no entanto, o mundo por trás do espelho também está presente no escuro, mesmo que não possa ser visto. Não há evidências em contrário.

Eu- Voltando à barba, é verdade que devo apará-la. Irei ao barbeiro.

Espelho- Eu acho que o barbeiro está obrigado a usar uma máscara como um astronauta, já que ele tem que ficar muito próximo de ti com as suas mãos e a sua cara.

Eu- Sim, como o dentista.

Espelho- E, como sabemos, o vírus voa e vai a toda parte. E se espirrares porque o cabelo de barba acaba no nariz, é como lançar uma granada de mão dentro da barbearia.

Eu- Sim, como no dentista.

Espelho- Deixa o raio do dentista em paz! Se não podes tratar dos teus próprios dentes, podes, no entanto, cortar a barba por conta própria.

Eu- Então, mesmo que me irrite perguntar, pela primeira vez vais tentar ajudar-me, sem discussões e sem comentários jocosos acerca do resultado?

Espelho- Não te preocupes. Vou simplesmente ficar a olhar para ti enquanto tu olhas para mim: se ficares com uma aparência decente, também eu ficarei. A Manuela logo tecerá os comentários que houver a fazer aos dois.

 

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Giuseppe Steffenino, é médico cardiologista no noroeste da Itália e está ligado a nós pela admiração que tem a Portugal e porque, com a sua companheira, Manuela Dalbesio, enfermeira, foram salvos de afogamento por nadadores-salvadores numa praia alentejana o ano passado. Quiseram encontrar mais tarde os heróis que os salvaram e deram por acaso com o nosso jornal. Temos mantido conversas desde então e sabido como os italianos estão a viver este momento avassalador da pandemia do covid-19, contados por quem está na linha da frente, que partilharemos com os leitores.

Para contactar o autor pode usar-se o gsteffenino@hotmail.it

Nota do editor: A tradução dos textos é da responsabilidade do Tribuna Alentejo.