6 Maio 2020      11:56

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Crónicas de um médico italiano em tempos de pandemia

Há vozes que vêm do meu espelho, nestes dias incertos e incrédulos.

Sempre tive um problema com os espelhos e com o que está por trás deles. Em minha casa há um que é muito parecido comigo, quase indistinguível. Para me enganar, ele continua a imitar perfeitamente a minha aparência e os meus movimentos ao longo dos anos, embora sempre do lado oposto e com um ligeiro atraso quase imperceptível. Finjo não perceber isso, porque não quero que ele se ofenda e saia de lá de dentro.

Ele lê muito e tem as suas próprias ideias, muitas vezes absolutamente originais. Quando falo com ele, especialmente de manhã, pareço ver mais claramente os meus próprios pensamentos ao longo do dia, embora isso nem sempre melhor o meu humor. Hoje foi assim:

(Eu) - Os Jornais, rádios e televisões dizem que a Fase 2 da pandemia começou.

(Espelho) - Isso significa que acabou o perigo de contágio?

(Eu) - Não sabemos exatamente quem é e quem não é contagioso. Os testes de imunidade não são muito precisos, têm valor limitado ao longo do tempo e não podem ser realizados para toda a população. Testes com uma zaragatoa no nariz ou na garganta dizem apenas se, naquele momento preciso, há vírus que possa ser transmitido.

(Espelho) - Então fase 2 significa apenas que não podemos continuar parados onde estamos, com esta vida parcial. E o que vai acontecer no teu hospital?

(Eu) - Muitas centenas de intervenções e exames não urgentes, mas necessários, foram adiados. Mesmo antes da epidemia, havia longas listas de espera. É um problema muito grande e não há projeto nem programa para compensar o tempo perdido.

(Espelho) - Para onde foram os pacientes com ataques cardíacos neste tempo de quarentena? Havia pelo menos alguns deles todos os dias, agora são 2 ou 3 por semana.

(Eu) - Temo que eles estejam a ficar em casa, com medo de ficarem infetados se forem ao hospital. Os militares chamam-lhes de "danos colaterais".

(Espelho) - Vamos andar por aí com luvas e uma máscara e ficaremos mais distantes um do outro. "La Muerta", de Millás, vem-me à mente.

(Eu) - Sim, aquele conto terrível em que ele se apaixona por uma mulher que vive dentro de uma espécie de bolha de sabão, mas ela rejeita-o. Ele aprende com um amigo que existem várias pessoas assim, que realmente morreram, mas que parecem viver e andar numa bolha. Depois ela arrepende-se e ele percebe que ele próprio, com o tempo, acabou por se trancar na sua própria bolha. Eu acho que vai ser um pouco assim, mas não será assim para sempre.

(Espelho) - “Para sempre não, para sempre é demasiado tempo.” Tu lembras-te de quem escreveu?

(Eu) - Não sei. Mas e se eu te perguntasse: quanto tempo é para sempre?

(Espelho) - "Às vezes, apenas um segundo". Eu responderia assim se fosse o Coelho Branco de Alice.

(Eu) - 1 a 0 e bola ao centro.  O que achas do aplicativo móvel para rastrear quem entrou em contato com uma pessoa infetada?

(Espelho) - A eficácia é muito incerta e o preço a pagar pela liberdade é desconhecido. De fato, ninguém parece poder explicar como, por quem e por quanto tempo os dados serão usados.

(Eu) - Mas tu acreditas que "tudo ficará bem", que todos sairemos melhor, que teremos aprendido muitas coisas úteis, para nós e para o futuro do nosso planeta.

(Espelho) - Bem, aquele escritor que tu também desconheces escreveu no Ensaio sobre a cegueira "É dessa massa que somos feitos, metade de indiferença e metade de malícia." Isso diz-te alguma coisa? Para quem tudo ficará bem? Para quem a vida já era difícil antes, agora será ainda mais difícil. Vê bem a foto do sem-abrigo do Stefano Rosselli que se espalhou na internet. Quanto ao planeta, nos últimos 100 anos nunca foi tão bom como hoje em dia e, se o homem desaparecesse para sempre e completamente, o planeta seria muito melhor.

(Eu) Sinto que estás um otimista hoje e vou trabalhar com mais entusiasmo. Será que voltaremos a Portugal neste verão?  Em Vila Nova de Milfontes temos amigos para ver, enquanto nos sentamos em frente a uma garrafa de Sagres.

(Espelho) Deixa as viagens em paz este ano. No próximo ano, em julho, quero ir ao Festival de Músicas do Mundo, em Sines, ou ao Festival do Marisco, em Olhão.

(Eu) Veremos se te portas bem nos próximos tempos ou se continuas a chatear-me com os teus enigmas e charadas. Lembra-te que deves pensar sempre antes de falar. Desejo-te um bom dia.

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Giuseppe Steffenino, é médico cardiologista no noroeste da Itália e está ligado a nós pela admiração que tem a Portugal e porque, com a sua companheira, Manuela Dalbesio, enfermeira, foram salvos de afogamento por nadadores-salvadores numa praia alentejana o ano passado. Quiseram encontrar mais tarde os heróis que os salvaram e deram por acaso com o nosso jornal. Temos mantido conversas desde então e sabido como os italianos estão a viver este momento avassalador da pandemia do covid-19, contados por quem está na linha da frente, que partilharemos com os leitores.

Para contactar o autor pode usar-se o gsteffenino@hotmail.it

Nota do editor: A tradução dos textos é da responsabilidade do Tribuna Alentejo.

Foto de Stefano Rosselli