9 Maio 2021      10:12

Está aqui

Como do outro lado do espelho, se rendeu ao seu complexo destino de inventor de pesadelos.

O quarto é o do meu consultório no hospital. Estou diante de um distinto cavalheiro, fato e gravata, cabelos e bigodes brancos, óculos redondos erguidos sobre a testa, na mão um cachimbo e um maço de papéis. Ele senta-se no meu Poäng.

(Ele) - Gosto deste lugar, com os gerânios na janela, e a poltrona é muito confortável. Sei que podem surgir muitas ideias, como as que publica neste jornal português. Viajei muito, li alguns livros daquele grande português entusiasta dos sonhos que escreveu:

(Eu)  - Quem sonha mais, vais-me dizer —
             Aquele que vê o mundo acertado
            Ou o que em sonhos se foi perder?

           O que é verdadeiro? O que mais será —
           A mentira que há na realidade
          Ou a mentira que em sonhos está?

(Ele)   e eu gostaria de tê-lo conhecido, mas ele morreu cedo. Eu nunca estive naquele país.

(Eu) - Fale mais devagar, por favor, o alemão traz-me algumas dificuldades no início da manhã.

(Ele) - Claro, mas posso falar a sua língua com prazer, se preferir. Ele está a olhar para o meu cachimbo: não se preocupe, está sempre apagado.

(Eu) - Com quem tenho o prazer de falar?

(Ele) - Você mencionou um trabalho meu do qual me orgulho muito, num dos seus artigos, essas histórias do seu espelho também me intrigaram. Sempre tive curiosidade sobre a aparência de pessoas famosas, mesmo aquelas que eu odiava, e de pessoas comuns. Além disso, a sua mãe aconselhou-me a ir vê-la para também lhe dar alguns conselhos sobre a manutenção de plantas e flores.

(Eu) - Como é que conheceu a minha mãe?

(Ele) - Demoraria muito tempo para explicar: foi há muitos anos, ela estava com a sua blusa de manga comprida em piqué branco e saia preta de Pequena Italiana, com sua turma no desfile de Mussolini. Peguei o bouquet de flores silvestres que tinha caído da sua mão e fiquei chocado com seu constrangimento em agradecer.

(Eu) - O que você estava a fazer naquele lugar?

(Ele) - Como já disse, fui amaldiçoado por ver o ditador italiano, também fui ver o Hitler e o Stalin. Mas agora, sinto muito, não tenho muito tempo para me dedicar a si: tenho outro compromisso em alguns minutos. Ela gosta de atribuir ao seu espelho pensamentos que reconhece dentro de si. Artifício brilhante, mas com potencial limitado para descobertas. Queria, portanto, lembrá-lo de algo de que estou convencido:  o verdadeiro e único espelho no qual podemos ver-nos são os nossos relacionamentos. Descobrimos quem somos através dos olhos dos outros. Todos os encontros que vivemos fazem-nos conhecer algo sobre nós mesmos - sem esses, somos cegos. E também os encontros que acontecem nos sonhos, se soubermos lê-los.

 

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Nota do autor - Ao acordar, felizmente tive tempo de anotar o diálogo com bastante precisão. Agradeço ao visitante - ele não disse quem era, mas acho que foi Carl Gustav  Jung, pelas fotos que encontrei na internet, a Noboru Nakamura pelo projeto da poltrona Poäng Ikea há 40 anos, a  Jorge Luis Borges - que me emprestou o título: Edgar Allan Poe (de El otro, el mismo, 1964); enfim ao grande Pessoa, com o seu “Quem sonha mais?

 

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Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.