24 Janeiro 2016      09:18

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CINCO ESCUDOS

Mariazinha ia fazer o exame da quarta classe dali a um mês. Morava num monte perdido no meio da Serra do Caldeirão a que davam o nome de Lontra, talvez relacionado com o animal em si que, até há pouco tempo atrás, fazia parte destas serranias. Mariazinha vivia com os seus pais e irmãos. E eram muitos. Não tinham eletricidade. Estrada de alcatrão e saneamento básico eram desconhecidos também. Aliás, não fariam ideia, por muitos anos, do que isso poderia ser. Nunca tinha sido até aí e aquelas coisas que nunca vimos, nunca conseguiremos imaginar o que são até que alguém registe a patente da invenção. Já tinham inventado a eletricidade neste mundo, mas lá ainda não se sabia o que era.

Mariazinha já andava na escola. Ela, os dois irmãos mais velhos e uma irmã mais nova iam a Santa Suzana à escola. A sua professora, Senhora Senhorinha, era regente, professora regente. Tinha ela própria tirado o sexto ano em Messines, casou com o Senhor Vasco e vieram viver para a propriedade da família, nas proximidades. Senhora Senhorinha ficou a trabalhar como regente na escola de Santa Suzana durante tantos anos quantos filhos e netos passaram pelo ensino. Mariazinha tinha dez anos e preparava-se para fazer o exame da quarta classe. Os irmãos, um já com catorze e o outro com treze, frequentavam, respetivamente, a terceira e quarta classe, também. Um deles iria fazer, junto com Mariazinha, o exame da quarta classe à vila.

A viagem para a escola, diariamente, era longa, mas nunca tão longa e aterrorizante como o dia do exame, na vila. A roupa tinha de ser a melhor e não podia falhar. Afinal, durante quatro anos tinha sido preparada para realizar o exame, o exame da quarta classe. Terminado o exame estava pronta para a vida profissional. Haveria de servir na casa de alguém. Já tinha aliás sido falado com a prima, pelos seus pais, em dia de mercado, que morava em Messines e cujos patrões precisavam de alguém de confiança, educada, que pudesse ajudar na lida da casa de familiares, em Lagoa. Mariazinha tinha o perfil indicado. Boa rapariga, educada, calma, obediente. Não tinha falhado ainda uma conta de somar na escola e sabia os verbos nos seus tempos e nos modos todos. Mariazinha sabia os rios e os caminhos-de-ferro todos. Nada que se comparasse ao seu irmão mais velho que andava na terceira classe. Esse, dizia o pai, repetidamente, em cada festa de Santa Suzana, a 11 de agosto, ao senhor prior, não foi feito para andar à escola. Gostava de trabalhar no campo, ajudar na horta e cortiça. Dizia isto já, pelo menos, há umas 7 festas, tantas quantas os anos de escola do irmão mais velho de Mariazinha. Ele não sabia fazer as contas de dividir nem tinha ideia se o Guadiana era no norte ou no sul.

Caminhavam todos os dias vários quilómetros até chegarem à escola. No caminho, juntavam-se a eles os colegas de montes vizinhos. Passavam algumas horas nas escolas e, após o regresso a casa, iam para as hortas fazer o trabalho que precisava ser feito ou iam tomar conta do rebanho das cabras e das varas de porcos que dividiam o monte com eles.

O dia do exame da quarta classe quase chegara e, todos preparados com a roupa nova, lá foram, a estrear, caminho do monte abaixo, para aquele que seria o dia da mudança das suas vidas ou da continuidade. Até aí, não sabiam o que os esperava. Ouviram só o que diziam os antigos colegas e a Senhora Senhorinha, regente, sobre aquelas pessoas que, na vila, lhes faziam o exame. Era preciso ir no dia antes para, manhã cedo, se sentarem na escola da vila, muito maior que a sua, numa cadeira fria como tudo o que rodeava o exame e, sob toda a circunstância, serem avaliados naquilo que foram treinados. Mariazinha tinha tudo decorado mas, também dominava as matérias. Era, entre os irmãos, a mais perspicaz e teria, sabiam os pais, uma vida descansada. Serviria numa casa de boas famílias e casaria com um bom partido. Seria uma boa dona de casa. Dar-lhes-ia netos e não voltaria a viver na Lontra. Dos irmãos já não tinham a mesma confiança.

Sentados na cadeira, todos os irmãos se olhavam e olhavam a Senhora Senhorinha. Os irmãos sentiam-se desconfortáveis naquela roupa apertada e, pior que tudo isso, aqueles sapatos tão apertados que nunca tinham tido de usar. Chamados, um a um, ao interior da sala onde os esperavam aquelas pessoas, as mãos transpiravam suor de nervos e a adrenalina subia a cada passo. Saíram, depois, da sala, um a um, repletos do mesmo nervosismo.

O irmão do meio, sofrível, passou. O irmão mais velho teria de voltar para o ano. Não conseguiu passar no crivo da sabedoria exigida. Não sabia os rios nem conseguiu fazer a prova dos nove mas, o pior mesmo, foram os verbos. A escola não era para ele. Pensava e sabia, no íntimo, que estas viagens eram desnecessárias. Mariazinha foi a melhor aluna desse dia. Passou com distinção e tinha acabado o exame da quarta classe. No mês seguinte partiria com a prima para Lagoa. Cada um dos irmãos pagou cinco escudos de emolumentos pelo exame da quarta classe.

 

Imagem daqui.