19 Agosto 2016      18:31

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CHARRUAS

"PARALELO 39N"

Eram dois irmãos, o Sertório e o Viriato. O Sertório fazia musculação e o Viriato tinha uma charrua e um par de bestas. Não moravam no mesmo sítio nem se conheciam. Tinham sido separados à nascença e eram muito diferentes, apesar de gémeos homozigóticos. Chamavam-se assim por causa dos antigos, esses generais pré-romanos. Os pais tinham tentado cuidar dos dois irmãos mas as circunstâncias da vida levaram todos a caminhos diferentes. Nem um se voltaria a encontrar, até ao dia em que aqui se relata nesta breve crónica.

Sertório fazia musculação. Era um homem grande, robusto, alto, adepto de culturismo e que colecionava prémios atrás de prémios. Tinha corrido já todos os cantos da Bélgica para onde fora ainda bebé. Tinha sido criado por um casal de primos e crescera no meio de uma cidade flamenga, para onde estes emigraram. Sertório além de fazer musculação, trabalhava numa fábrica de produção de carros franceses e tinha uma Harley-Davidson. Não casara. Não se interessara por ninguém a não ser por um espelho grande que tinha lá em casa.

Viriato era um homem grande também mas magro, franzino, subnutrido. Era solteiro e vivia no meio da serra, acompanhado pelos animais que tratava como se fossem princesas e príncipes. Trabalhava no campo se sol a sol e os seus músculos foram moldados pelo trabalho árduo no campo. Viriato ficara por Cabanas de seu nome, criado por uns tios que não emigraram para lado nenhum. Nunca quisera estudar e nunca pensara como seria o mundo longe daquele que conhecia. Tinha uma charrua e duas bestas e isso chegava-lhe. Era solteiro. Nunca se interessara por ninguém. As suas paixões lavravam as terras, deixando rasgos sensuais onde germinavam as sementes que deixava e davam origem ao centeio.

Em cada ano, as batatas e o centeio juntavam-se e cresciam aos olhos de Viriato como se fossem seus descendentes, seus filhos pródigos. Tinha uma televisão velhinha na casa, adaptada ao TDT que via para passar as noites desde que os seus tios morreram. As noites eram longas e as ideias de Viriato não passavam pela chegada dos romanos nem pela sua partida. Muito raramente se via alguém passar por aqueles lados. E quando passava, era o padeiro ou a mulher da mercearia. Viriato estava sempre acompanhado e nunca só. Tinha a charrua e duas bestas, não contando com as galinhas, as ovelhas e os cães fieis.

Sertório decidiu, após participar num concurso de culturismo em Lisboa, levar a sua Harley a conhecer a terra que os seus primos, que achava serem seus pais, terem conhecido há muitos anos, antes de terem emigrado para a Bélgica e nunca mais terem mantido contacto com ninguém. Ele sabia que algo muito mau acontecera mas isso era assunto tabu e quando assim é, as pessoas não falam nisso. Nem nos livros se leem.

Pelas estradas longas e direitas, estreitas e curvadas das serras e das planícies, Sertório chegou ao meio da serra e parou, olhando os montes e os vales ao longe, como se tudo fosse uma miragem. Sentia que conhecia os pormenores. As imagens diziam-lhe que já ali tinha estado. Não acreditava nisso. Os pais que eram primos sempre lhe disseram que nascera na Bélgica e lhe deram o nome por causa de uns livros de história que tinham levado consigo. Sertório acreditava e inspirando um trago de ar fresco, deu à chave para continuar viagem e aí a moto falhou. Acabara-se-lhe a gasolina. A única possibilidade era gritar ao homem que, no meio da encosta, parara a charrua e as duas bestas e o observava atentamente. Gritou e o homem, de seu nome Viriato, deslocou-se até ele. Cumprimentaram-se olhando-se de uma forma estranha tão familiar que ficaram sem saber o que dizer.

Viriato correu a casa, levou um jerrican e tirou dois litros de gasolina da sua Famel e voltou junto do estranho, Sertório de seu nome, e encheu o depósito. A Harley podia já continuar até ao lugar que chamava casa na Bélgica. Não sabia nem saberia que aquela era a sua verdadeira casa. Viriato invejou Sertório e Sertório invejou Viriato, cada um à sua maneira e cada um pelas suas razões.

Sertório sentiu-se como se olhasse para sim mesmo num espelho que tornava as pessoas mais magras e Viriato teve a sensação oposta. Não se voltariam a ver mas lembravam-se um do outro. Lembrar-se-iam todos os dias.

 

Imagem daqui