1 Dezembro 2018      13:43

Está aqui

Cataratas

Lá bem atrás dos montes da Serra do Caldeirão, numa umbria, onde o sol deixava que a vegetação medrasse com mais força, vivia uma família de dois idosos. Tinham sido já novos há muito tempo, quando ainda só havia a telefonia sem fios e se correspondiam as pessoas, quem sabia escrever, através de aerogramas. Nenhum deles saiba ler ou escrever e agora, nestes dias, o que mais os impressionava, era a mudança que as coisas tinham tido.

O mundo mudara com uma velocidade que nenhum deles se apercebera. A realidade das montanhas alterou-se pouco. Houve algumas inovações desde o tempo em que se casaram e construíram ali aquela casa em pedra, caiada de branco, com telhas romanas. Essas inovações passaram pela vinda da eletricidade, algures no meio dos anos 80, o acrescento de uma casa de banho na casa. Esta já em tijolo e telhas Lusalite, diferenciando-se do resto da habitação. A casa de banho era uma coisa nova à qual ainda não se tinham bem habituado, mas lá chegariam e usavam-na, todos os dias, ou quase todos os dias.

Até ao dia em que passaram a ter essa parte da sua habitação, costumavam ir aos lugares escondidos, no vale pertinho da casa. Era o lugar onde as plantas estavam mais viçosas. Os banhos eram num alguidar de lata e a água, depois de aquecida e posta num balde, também de lata, mas com uma espécie de chuveiro, por onde saiam os pingos que haviam de tirar a maior camada de pó do corpo do casal. A eletricidade e a casa de banho mudaram esses rituais. As plantas não estavam tão viçosas nestes dias e o cheiro a petróleo da casa tinha misteriosamente desaparecido.

O casal era feliz, mesmo com essas mudanças que tinham ocorrido na sua vida. O importante mesmo continuava a ser a rádio, já moderna, ligada à luz. A televisão que agora passou a fazer parte da sua vida e cujas telenovelas e telejornais não dispensavam. Como era interessante saber o que ia acontecer à Tieta, ou a Zeca Diabo. O que guardaria a Perpétua no caixote ou mesmo, o que tanto cativava o mulherio na árvore do falecido Jorge Tadeu. A mulher percebia mais disto do que o marido. Ele percebia do canto baldão e dos programas da Castrense e da Rádio Fóia. Ambos percebiam muito bem o Almanaque Borda D’Água, ainda que não percebessem as letrinhas.

Abaixo da casa, que era a única naquele monte, onde se chegava através de uma íngreme estrada de terra batida, estavam as hortas e, ao lado das hortas, passava uma ribeira que, apesar de seca no verão, quando chegavam as primeiras chuvas, passava a jorrar água. Isto acontecia especialmente num lugar onde havia quedas de água. Era o mais belo lugar das redondezas. A água ao cair fazia um barulho esplendoroso. Fazia lembrar sítios onde havia algo assim, Iguaçu, Victoria, Niagara… e tantos outros. Estas eram só no monte da Bezerra. Mas a beleza, ainda que em reduzido tamanho, era igualável.

O casal admirava a beleza daquele lugar. Cada vez lhes passava mais despercebida porque quando vemos as mesmas coisas todos os dias acabamos por não prestar muita atenção à beleza renovada das coisas. Assim é com tanta coisa. O casal admirava a beleza daquele sempre que podia, embora cada vez mais tudo lhes parecesse nublado. Não sabiam porque, as quedas de água estavam envoltas numa neblina. As personagens da novela eram desfocadas e os bonecos do almanaque já não se comparavam ao que era antes. Não sabiam o que se passava. Teriam sido as inovações daquele lugar? Que se passava? Falaram sobre o assunto e decidiram ir os dois ao doutor, que dava consultas na Casa do Povo. Lá foram. E lá ficaram a saber o que se passavam. Diagnóstico, cataratas.

Não, não falamos das que jorravam perto de si, mas daquelas que começavam a espalhar-se na menina dos olhos. Ouvir, até que ouviam bem. O marido era um bocadinho mouco, mas a mulher tinha ouvido afinado. Ver é que estava como se cheio da água que caía no vale. Depois de várias consultas e de viverem no nevoeiro durante ano e meio, lá chegou a carta a dar a ordem de fazer a operação, em duas vezes aos olhos. Tiraram as cataratas do olhar para ver as outras nítidas. Parecia um monte novo, já a mulher conseguia enfiar a linha na agulha, aquela gente da televisão já parecia normal e, ainda que não soubesse ler, o Borda D’Água já era interessante outra vez.

E a água das cataratas, das outras, lá estava, quando começava a chover. A daquelas dos olhos tinham desparecido numa operação que até nem foi muito má.

 

 

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