23 Março 2019      14:00

Está aqui

Caspa

Todo o dia. A todas as horas. A todo o momento. Caspa. Kasparov, o famoso jogador de xadrez, sofria de caspa e isso era uma enorme maçada que impedia um xeque-mate perfeito. Na sua vida de campeão, aquela neve branca que se lhe assentava sobre os ombros, tornava-se num peão que não andava muito. Kasparov havia de se habituar, mas já tinha perdido uns jogos à conta disso. Os tabuleiros pareciam a Guerra dos Tronos e, da cabeça do jogador, caía a neve e o Inverno estava a chegar.

Do mesmo problema se queixava o ti Bola de Neve, homem octogenário da Aldeia da Vila que, oitenta anos depois, ainda não tinha encontrado solução para a caspa. Nascera já com caspa na cabeça. No dia em que nasceu, no meio da penugem que iria depois dar lugar ao cabelo, havia já caspa e a cabeça do pobre bebé parecia mesmo uma bola de neve, de tão branquinha que era.

A criança não ganhou logo a alcunha, pois pensaram que aquilo passasse um dia, talvez na adolescência, mudasse. Não mudou. Acabou a criança, a quem chamaram Jesuíno, por ter a pessoa de viver com caspa na cabeça um bom par de anos. Incomodava, mas não chateava por aí além o rapaz. Na idade adulta teve de fazer uma série de tratamentos que não resultaram em nada. Viveu assim até aos oitenta anos e foi um homem feliz. Lá na Aldeia da Vila, cultivou uma família, a horta e até os campos à volta do monte que tinha arranjadinho.

Depois de se reformar, ti Bola de Neve começou a passar os seus dias a jogar às cartas com os vizinhos também reformados, na praça da Aldeia da Vila. Jogavam tardes inteiras à sueca, à bisca e aos três setes e o grande vencedor era sempre o ti Bola de Neve, fosse qual fosse a equipa que com ele fizesse par, Jesuíno ganhava sempre.

O desafio e o seu sonho era ganhar uma partida a Kasparov. Bem sabia que o outro não jogava à carta, mas sim xadrez. Isso era um obstáculo mas ti Bola de Neve era um homem determinado e nada seria pior do que viver com caspa a vida inteira. Kasparov não seria certamente algo que lhe metesse medo.

Jesuíno era meticuloso e decidiu avançar. Pediu aos netos que pesquisassem a melhor forma de desafiar o campeão. Tinha, porém, um problema, não sabia jogar xadrez. Uns vídeos do Youtube fornecidos pelos netos e aquilo ao fim de duas semanas estava resolvido. Ti Bola de Neve já ganhava a todos os velhotes que jogavam xadrez e damas nas mesas do lado. Faltava concretizar agora o desafio de ganhar a Kasparov.

Meses depois, já após algum desgaste e descrença de Jesuíno, eis que surgiu uma carta vinda do campeão. Aceitava o desafio e, mais do que tudo o resto, aceitava ser desafiado em Aldeia da Vila, na mesa do jardim. Havia de ser uma festa com a imprensa internacional toda amontoada em cima de ti Bola de Neve e de Kasparov.

Marcaram o grande evento para dia 25 de abril, era feriado e o tempo começava já a ficar melhor. Manhã cedo, chegou o grande homem (era muito alto), à Aldeia e, nervoso, já estava Jesuíno sentadinho na cadeira, em frente a um tabuleiro de xadrez. Até o cronómetro lá estava. Os netos estavam tão nervosos como o avô e Kasparov parecia descontraído. Estava, efetivamente.

Começou o jogo e as peças mudavam-se, tal como a caspa se acumulava, de um lado e do outro em cima do tabuleiro. Dois minutos depois, xeque-mate! Lá se foi o sonho do Ti Bola de Neve em derrotar o grande Kasparov. Nada havia a fazer. As peças e o Rei foram mais fortes. Ti Bola de Neve estava resignado, mas contente ao mesmo tempo. Tinha defrontado o grande campeão e o seu lado do tabuleiro tinha muito mais caspa do que o lado de Kasparov! Era o campeão da caspa.