24 Janeiro 2016      10:35

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CARNAVALIZAÇÃO, FUTEBOLIZAÇÃO, DEGRADAÇÃO

Tenho a certeza que já todos ouvimos aquela expressão que diz que “Natal é quando um homem quiser” e que nós mesmos, nalgum ponto da nossa vida, também já a proferimos. Esta expressão não tem, à partida, qualquer tipo de problema a não ser que muito raramente se torna em atitude. – Isto, digo com um pico de tristeza e uma pontinha nem tão inocente de sarcasmo, não acontece no entanto com o Carnaval. O Carnaval está tão presente na nossa vida e ao longo de todo o ano que acho que seria mais justificado trocarmos a expressão do Natal pelo Carnaval: “Carnaval é quando um homem quiser”. Não obstante que a maior parte dos homens deste pequeno Portugal não queria, conscientemente, que o Carnaval seja todo o ano.

Não se engane, caro leitor, não falo do Carnaval que nós conhecemos, a celebração que estamos quase a presenciar mais um ano, falo da transitoriedade de ideais carnavalescos para a nossa vida real, natural (ou não), séria (nem tanto). Falo da carnavalização de um país que não se sabe carnavalizado e não se sabendo, pouco ou nada pode fazer relativamente a isso.

A culpa não se pode dizer que seja de alguém em específico mas de todos nós que formamos esta massa cinzenta passiva e alimentada a diversão e folia ilusórias. – Existe aquele momento em que nos rebelamos em palavras e uma voz mais alta que o normal, cómodos na presença daqueles que sabemos não nos contestarem, mas a nossa coragem termina onde termina esse grupo de amigos. Somos medrosos para além de idiotas. Sim, somos. Não devemos ter, de maneira nenhuma, vergonha de o dizer, não nos devemos ludibriar com ideias de grandes vitórias porque a humildade ensina-nos muito mais do que a arrogância e aquele que compreende que é um idiota está no ponto de partida para mudar a sua conduta.

O problema, caro leitor, é quando não queremos mudar a nossa conduta e insistimos, irrepreensivelmente, em chocar a nossa cabeça contra a mesma parede de sempre e esperar que a nossa cabeça seja mais forte que toda a estrutura construída para abrigar um ser humano sem desmoronar. No mínimo vamos ofender-nos porque essa parede nos chamou fracos indiretamente e no máximo essa parede destruíra todos os nossos paradigmas e sistemas de crença e nós iremos odiá-la como se tivesse cometido um crime hediondo.

A carnavalização passa também por essa ofensa gratuita e errónea com o que é supérfluo e leviano, passa por ter uma lista de prioridades extremamente bem definidas mas totalmente trocadas. A carnavalização é o exagero da defesa contra essa ofensa e não a indiferença algo instruída contra ela mesma. Digo, quando sabemos quem somos, o que queremos e o que defendemos raramente vestimos a pele do que nos chamam, do que nos fazem, da ideia que têm de nós. – E isto não serve apenas de uma perspetiva individual mas muito mais de uma perspetiva opcional de pertencer a determinado grupo, a determinada ideia, a determinado princípio que, muito sinceramente, é encarcerado e abafado por uma ideia sublime do mesmo, uma tese realizada em cima do joelho para A, B ou C verem e no final, aplaudirem (sem que na realidade compreendam o que a tese dizia).

Vivemos neste país de idiotas em que a maior desgraça que pode acontecer é alguém ferir o orgulho da nossa camisola – um ferimento em género de piada que agarramos e transformamos em razões múltiplas para demonstrar uma força carnavalesca, exagerada em trejeitos, que pensamos compensar a nossa falta de coragem para mudar a nossa vida nos restantes dias úteis. Vivemos neste país de idiotas em que nos importa e nos fere muito mais veementemente que uma candidata política tome uma posição futebolística do que nos fere que na nossa política exista um espaço para anexar o futebol. – Primeiro o futebol, o orgulho do meu clube e da minha camisola, depois as minhas necessidades básicas, os meus direitos humanos, a minha dignidade enquanto ser vivo. Primeiro o meu espaço para ser insolente contra outros, porque sim, depois o que me garante uma vida minimamente feliz. E repare que já digo minimamente.

Quando o nosso voto é baseado num lapso (extremamente infeliz e amador, deixem-me confessar) e não numa análise cuidada do perfil do candidato percebemos extremamente bem porque razão Portugal avança a passo de caracol nesta senda da evolução e de melhores condições de vida. Quando discutimos com um amigo nosso de longa data porque defendemos até á morte um jogador de futebol (e quem diz jogador diz ator, atriz, músico…) que nem imagina, na comodidade da sua casa revestida com biliões de euros porque correu atrás de uma bola durante um espaço de tempo, que nós existimos e que estamos dispostos a morrer por ele, – E muitos de nós que nem pelos nossos pais ou os nossos avós estamos dispostos a morrer. – que podemos nós ser senão idiotas? Que podemos nós oferecer a este país senão a vivência de um contínuo Carnaval?

Política não nos importa, ciência é para os que disso percebem, literatura fica na revista Maria, desporto torna-se elite e fábrica monetária e a sociedade restringe-se aos limites da nossa capacidade de olhar para além. Para além da tese meio aldrabada para causar impacto, para além da nossa camisola, para além da nossa idiotice, para além do nosso carnaval de figuras grotescas. – enfim, para além da consequência dos nossos atos que julgamos isolados mas que dão, cada vez mais, corpo a uma nação.

Procuramos no ínfimo de nós uma justificação para que pertençamos ao grupo dos bons, dos santos, dos suprassumos da cultura europeia e no final acabamos por confundir o sentido querido e agradável da palavra “terrinha” proferido por um brasileiro com o sentido desprezível e afetado da mesma palavra em português porque Deus nos livre de ofenderem uma das nossas modelos de topo que vive rodeada de luxo para abanar as ancas numa passerelle. Mas depois, no café, achamos que os nossos bombeiros não deviam receber qualquer ordenado e que o nosso vizinho que passa de sol a sol no campo não merece muito mais do que recebe. – É este o nosso movimento de carnavalização e esta a troca das nossas prioridades: queremos morrer por fantoches e máscaras bem elaboradas mas desdenhamos da simplicidade da vida real enquanto dizemos procurá-la. Os nossos heróis não são mais do que figuras ficcionais.

O que é que nós somos? Idiotas que compactuam com a degradação do seu próprio país, que compactuam com o seu sistema erróneo e, ainda pior, com as ideias que o sistema erróneo impregnou na nossa creditação acerca do sistema erróneo. No final celebramos a liberdade.

Vou acabar apenas dizendo-lhe que hoje não estaria aqui a falar de idiotas se um dia não tivesse olhado no espelho e tivesse proferido com uma imensa raiva e frustração: que idiota és! Mal sonhava que a partir desse dia ficaria imune à palavra idiota. Hoje existem uns tantos que, na sua idiotice, me tentam chamar de idiota mas eu já encarei a minha degradação para que me seja fácil encarar a de Portugal. Ainda hoje, se necessário, a encaro.

E você, já se chamou de idiota hoje?

Na capa Ramon Casas i Carbó, "After the Ball", Oil on Canvas, 1895. Museo de la Abadía de Montserrat, Barcelon