12 Setembro 2020      11:13

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A caravela portuguesa

São dois dias na vida de uma alforreca. São dois dias na vida de um ser do mar que viaja ao sabor das águas. Porém, esta não era como as outras. Era diferente, tinha personalidade e, diga-se de passagem, que personalidade. Uns dias, a nossa alforreca, cuja sua graça era Medusa, estava bem e eufórica, outros dias estava em baixo e absolutamente furiosa. Só conseguia pensar numa coisa e isso não era nada de bom.

Medusa, poderei arriscar, sofria de alguma forma congénita de bipolaridade. Não haveria outra forma de pôr as coisas na frente do senhor leitor.

Profissional de extrema categoria e elevada qualidade, Medusa era marinheira, comerciante do mar, daí o seu nome de caravela portuguesa. Comprava coisas do mar que vendia a outros habitantes do mar. Por vezes, comprava produtos a esses habitantes do mar que tentava vender aos da terra, sem nunca sair da água. Nos dias em que estava bem, tinha sucesso na sua produção e comércio. Nos dias maus, tiranizava os clientes e agredia-os furiosamente. Não havia quem se aproximasse dela nesses dias. Podeis questionar como se sabia em que dias estava bem e em que outros dias estava mal. Não era , de todo, fácil. Havia, porém um truque com que todos se familiarizaram, por uma questão de sobrevivência. Nos dias em que estava bem, o seu corpo transparente parecia que dourava num azul profundo e, tocada pelos raios de sol, resplandecia e atraia os clientes nas águas também quasi azuis do oceano.

Nos dias em que a sua dupla personalidade a levava para lugares mais sombrios, uma tonalidade púrpura tomava conta dela e só os mais incautos ousavam aproximar-se dela. O resultado, como se pode imaginar era uma descarga de fisalitoxina, em vez dos habituais produtos que vendia. Camarão e outros seres do mar estavam entre as iguaria que comercializava. O resultado da descarga era, quase sempre queimaduras e, em casos muito extremos, até a morte dos desprevenidos.

Medusa, era invejada e desprezada pelas suas concorrentes. As verdadeiras, como que em forma de cogumelos estavam também no negócio dos oceanos e do mar, mas pouco podiam concorrer em relação à caravela portuguesa que percorria as águas quentes dos oceanos. Não era muito amante de frio. Nunca tinha sido. Dizia sempre a todos os que com ela falavam nos dias bons que, nos mares gelados, as suas velas não iriam longe. Nos dias maus não dizia nada, ninguém ousava ir perto dela. Falava sozinha às vezes e nesses dias divagava em busca de uma presa par descarregar a sua fúria.

Uns dias, talvez um peixe levasse com uma das células urticantes, noutros quem sabe um humano que se lembrasse chegar perto. Os seres humanos, neste mundo, não tinham o discernimento nem a capacidade de avaliar situações difíceis como os animais. Por isso, eram tantas vezes considerados como seres menores. Medusa tinha já visto alguns e tocado em tantos outros. Não tinha sido nunca um toque fraternal ou de carinho. Abominava, nos dias maus, qualquer ser. Por isso, Medusa, vivia só no seu mundo, apesar de estar rodeada de tantos seres com características que poderiam assemelhar-se a si e que partilhavam o seu eco-sistema.

Nunca tinha medo. Foi, a partir de uma certa altura em que os dias maus passaram a ser mais e mais e os bons praticamente desapareceram que o facto de não ter medo, de não falar com ninguém e de toda a gente ter medo de si que levou Medusa a decidir deixar as águas tropicais profundas e voltar à costa onde tinha já sido tão feliz. Navegou dias e dias sem comercializar uma única peça ou nenhum produto. Aproximou-se da Costa. A areia era uma longa autoestrada branca, com milhões de grãos. Esse dia era um dia bom, a cor púrpura tinha desaparecido e no lugar dela estava um azul dourado. Depois de muitos anos quase sem falar com ninguém, queria falar, contar a sua história.

Na areia, um grupo de jovens que vestiam só calções curtos e saltavam na areia, atirando entre si coisas que Medusa nunca tinha visto.

Cada vez mais perto, falava com eles sem parar, mas pareciam nem a ouvir nem a perceber. Seria por falar uma língua diferente ou porque estes não falavam e eram de uma inteligência menor.

Intrigada, decidiu aproximar-se ainda mais e, já muito perto, uma vez que não a ouviam tocou numa delas para chamar a atenção. O grito foi ensurdecedor e todos os outros começaram a gritar e a bater com as coisas que atiravam entre si. Medusa falava e gritava, dizendo que só queria falar. De nada lhe serviu pois nunca mais voltou às águas que tanto gostava. A última imagem que lhe ficaria era a de uma infinito mar azul, tocado pelos raios do sol e a de aquele ter sido um dia bom.