17 Janeiro 2016      10:10

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CANONIZAÇÃO LITERÁRIA OU BEATIFICAÇÃO?

Hoje, trago-vos algumas questões que tenho vindo a colocar-me no que respeita à elaboração dos programas de Língua Portuguesa porque, não sei se repararam, mas há anos que se insiste no mesmo. De facto, e sem considerarmos questões relativas ao funcionamento da língua, temos, entre enfado e bocejos dos alunos, no nono ano de escolaridade, as seguintes obras de leitura obrigatória: Os Lusíadas de Camões e O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, tudo do século XVI.

Não me interpretem mal, mas já que temos novo Ministro, creio que seria uma ótima altura para reformar e reestruturar os programas de Língua Portuguesa, sobretudo os de terceiro ciclo. Com efeito, considero premente a motivação dos jovens para a leitura, todavia, mesmo sabendo que as obras dos referidos autores não serão lidas na íntegra, creio que seria benéfico insistir numa Literatura Contemporânea mais acessível, mais motivadora com que os jovens se pudessem identificar.

Aos puristas do currículo da era de Matusalém, peço que baixem as armas. Pois, não pretendo aqui armar-me em iconoclasta. Contudo, sou da opinião que deve preconizar-se alguma flexibilidade e creio que não se motiva para a leitura o comum dos mortais com autores do Renascimento, porém tampouco pretendo que os mesmos sejam suprimidos dos programas. Seriam, claro está, abordados e referidos no terceiro ciclo, mas deixar-se-ia o estudo da sua obra para o ensino secundário, em que se estudariam as obras literárias de relevo cronologicamente (e não só genealogicamente) de forma contínua até ao décimo segundo ano.

Vindo de um sistema de ensino diferente e tendo um termo de comparação, ouso pronunciar-me sobre essa questão, já que, aluna num país e professora (e aluna) noutro, pelas experiências que tive penso ter a noção do que é passível de trazer melhores resultados.

Quando se fala da escolha de obras de leitura obrigatória, é necessário ter em conta a questão dos cânones literários propriamente ditos, todavia, deixo para outra vez essa discussão, assim como a que lhe subjaz relativa aos critérios de consagração dos mesmos. Assim, interessa-nos aqui questionar a seleção do rol de obras literárias incontornáveis como leitura obrigatória e recreativa.

Com efeito, é do senso comum a importância dos clássicos, mas o tempo evolui e aparecem outros clássicos, que sem destronar os seus predecessores vêm acrescentar-se ao nobre panteão. Mais aí surge outra questão: será sempre necessário esperar que morram os escritores para recomendar a sua leitura? Como qualificar essa valorização post mortem? Será necrofilia literária?

Ademais, hoje em dia, temos na cena literária de língua portuguesa, inúmeros autores incontornáveis de diversos países, com imenso valor e só para citar alguns: Pepetela, Ondjaki, Rui Zink, Joana Ruas, José Luís Peixoto, Alice Vieira, etc.

Deste modo, há-que mudar as mentalidades, há-que evoluir com o seu tempo e deixar que os adolescentes, também ganhem o gosto pela leitura e comecem desde cedo a apreciar a Literatura, sobretudo, agora, na era da informática. Mas, otimista por natureza, tenho esperança que ainda se possa reverter essa situação e que sejam escolhidas para a mui nobre tarefa de desenhar curricula, pessoas com visão periférica, que não permitam que se repitam as desmesuras do passado.

De facto, não podemos continuar nem a beatificar os autores canónicos, livrando-os às mãos inexpertas de quem não os sabe apreciar, nem a tomar por pindéricos os autores contemporâneos, que, já reconhecidos pelo seu grande valor literário e donos de obra consistente, têm tanto para oferecer.

 

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