13 Outubro 2019      17:59

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Burning (2018)

Ou como fazer do absoluto desconforto um mistério apenas resolúvel pelo fogo, que é como quem diz, irresolúvel pelos padrões da carne + sangue pensante característica, na pior das hipóteses, do homo sapiens.

“Há alguma alma aí dentro?”, perguntou certo dia o General Thade a um pobre sapiens destituído de posição na cadeia alimentar. Thade, homo a fazer de macaco e também sapiens, diga-se, ao serviço de Tim Burton – cineasta com forte inclinação para máscaras integrais. Que Deus nos livre da dúvida!, alguém escreveu numa das paredes anexas à Igreja dos Mártires. Não é bem assim, pois Deus tem tudo para não existir e colocar a questão  (digamos assim) é sanidade que chegue, é vertigem controlada, potência sob controlo desde que se assuma o limite (a resposta, digamos assim) como inatingível – se não para sempre, ao menos pelo tempo suficiente, que é como quem diz, até um segundo antes da morte.

Há, no filme, pois é de um filme que se trata, um escritor que nunca se materializa – num breve instante alguém lhe diz que escreve muito bem, mas não passa de uma carta que nem sequer é enviada, pelo que nos é dado a ver –, escritor quimérico, portanto, logo se existe questão a colocar, e acreditemos que sim, esta tem, é claro, status de Super-questão, ou seja, não é formulável em termos linguísticos, tal como a matemática das singularidades cósmicas não é formulável em termos lógico-numéricos. É material instável, mas que pode ser intuído como permanente. Ao alcance do padre, caso este não fosse uma farsa, ou de um Mestre Jedi, caso este não fosse a simbologia ficcionada de uma farsa. Não de um jovem aspirante a escritor com dificuldades de comunicação a viver algures entre a fronteira com a Coreia do Norte e Seul – 56 quilómetros que equivalem a 56 milhões.

Cedo nos é dado sexo, sem contacto visual entre os intervenientes, e pouco depois, inversão sem equívocos, masturbação. Um aspirante a escritor também se masturba – tal como um escritor consagrado, ou um padre, ou qualquer um que respire –, e fá-lo porque não pode deixar de o fazer. Está condenado (expressão só na aparência dúbia) a tal pelo infinitamente pequeno e não pelo infinitamente grande. Pelos vistos, é o gene que ordena a ejaculação, não a entidade divina mais à mão (sim, não resisti). Mas também há quem se esconda, mantendo uma certa aparência de limpeza que facilmente se confunde com integridade, isto no livre decorrer de um processo educativo que, pelo menos a esse nível, se homogeneizou. Só que não o pode fazer para sempre. Um dia vai prevalecer o bocejo, também simbologia e farsa, a hipótese inválida da não-pertença ou do privilégio (normalmente, a irradiar do bem-material, de preferência o topo-de-gama – ilusão que não parece ilusão, pois é palpável, e os ricos gostam de parecer limpos e excepcionais), mas que não escapa a um olhar atento e um pouco menos iludido, o olhar do despojado que lê livros. Em suma, da conjunção do bem-material com a…masculinidade resulta a substância (cujo reflexo é uma luz densa em cores sóbrias) que predomina. O que pouco ou nada permite avançar.

Pobres mulheres, que ficam de fora e nos podiam salvar se as deixassem? Não, outra ilusão – Pelas mesmas ordens de razão, são espaços vazios a ocupar, com necessidades semelhantes obteníveis por movimentos complementares ou contrários, conforme se queira. Estão igualmente perdidas. Quando se espraiam, não há escapatória, ficam-se pela mera tentativa, uma vez que acabam por chocar com matéria mais resistente, tal é o poder do músculo - e então desaparecem. É a vida, vida que sabemos dura.

Explosão e fogo – Seja no coração das estrelas de grande massa (de onde viemos, para que conste) ou como quimera visual (objectivo imberbe que se pode virar contra nós, quando um dos sapiens decide queimar outro, transformando a ilusão em literalidade). Pouco mais resta.

 

Imagem de m.blog.hu