10 Setembro 2017      12:18

Está aqui

BULLET IN THE HEAD

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Bullet in the head (1990), de John Woo

Hong Kong, 1967, três amigos inseparáveis, Ben/Ah Bee, Frank/Ah Fai e Paul/Little Wing, fazem o que podem para sobreviver. As ruas não podiam ser mais difíceis, dominadas por gangs e negócios escuros, e os tempos só acrescentam obstáculos (era a época dos motins pró-comunistas). Ben vai casar. Frank, a caminho do casamento, é atacado e ferido por membros de um gang rival. Na resposta dos três amigos, logo nessa madrugada, o líder do gang é morto e são forçados a fugir para … o meio da guerra do Vietname. Aí encontram o esperado de tudo - o horror indizível, ouro, morte, sangue, honra, perda de honra, escoltados, claro, pelo novo amigo, o quarto mosqueteiro, pois são sempre quatro, Luke/Ah Lok, a personagem cristã de serviço.

O cinema de John Woo, melhor, o cinema asiático de John Woo vive para responder a um dilema: como fazer coabitar os elementos primordiais do cinema de Hong-Kong com as necessidades (intimidades e grandezas) do conto modelar ocidental, o romance do século XIX - por sua vez a base referencial do cinema narrativo. O desejo secreto de alcançar Hollywood sem perder a linguagem original, fruto da educação. Esforço demente e, obviamente, intolerável! Fixemos o olhar em Bullet in the Head (1990). À primeira vista: Kung-Fu e The Deer Hunter – O ballet do tiroteio e Shakespeare.

Não foi sempre assim: começou nas artes-marciais, puras e duras, e simbólicas, na mítica Golden Harvest, veículo de apresentação ao Ocidente do cinema de Hong-Kong, de Bruce Lee e Jackie Chan, e que tantos nunca mais deixaram de ver como o cinema de Hong Kong. Só que havia outro, meio-escondido, e John Woo seria o seu rosto. Antes, como referido, as artes-marciais e uma comédia anónima, já produzida fora da Golden Harvest. Desse acto de, digamos por simpatia, desviante bravura a A Better Tomorrow (1986), mediaram cinco anos sem dirigir qualquer filme. Mas com A Better Tomorrow teve o espectador ocidental direito a algo que parecia igual a qualquer coisa que já tinha visto mas, não há como escapar, cheirava a novo. O bailado mortal dos múltiplos e constantes tiroteios parecia decalcado dos de Sam Peckinpah, mas servia um propósito distinto, o propósito (jogado na aparência) de se servir a si próprio. Uma mecânica de puro espectáculo. Contudo era apenas uma parte do processo, entre as detonações havia solidão, moral, perda, mudança, temperamento inabalável; nada de novo afinal, dirão, mas com um carácter muito particular, e a reunião entre ambos formava algo que espantava visualmente, à maneira de uma boa novidade. Como uma antiga moda que retorna e já não é bem o que recordávamos, no fim de contas uma sensação envergonhada de futuro. E também, como visto, de diferenciação. Depois vieram A Better Tomorrow 2 (1987), The Killer (1989), Bullet in the Head (1990), Once a Thief (1991) e Hard Boiled (1992) antes da ida (infelizmente, e com uma única excepção, falhada) para Hollywood.

Tornemos à diferença necessária e a Bullet in the Head. Por exemplo, três cenas que (irredutíveis críticos) garantem nunca seriam filmadas no Ocidente:

- A despedida dos recém-casados no meio do caos de um motim. Ben, antes da retirada para o Vietname vai despedir-se da mulher à saída de uma fábrica, onde imaginamos ela trabalha. O motim explode. Os jovens procuram-se. Encontram-se. Uma bomba junto ao passeio. Os jovens beijam-se. A violência pára (mas como (?), se não houve tempo suficiente que pudesse ter passado), e um polícia da brigada anti-bomba tenta desactivar a bomba. Todos assistem menos os amantes. Estes abraçam-se e dizem as coisas que têm de ser ditas, mas já ninguém faz dizer em ecrã. A bomba explode. O polícia contorce-se no chão. A música da banda-sonora, melíflua, acompanhou toda a cena. É quando Ben repara no que acabou de acontecer.

- Já no Vietname, a apresentação do quarto mosqueteiro, Luke, a Ben: Ben lava o rosto na casa de banho de um clube nocturno. Aparece Luke. Ben olha para Luke. A música representativa, um instrumental ao piano. Por trás de Luke, um agiota repelente, que observámos momentos antes numa negociata, a urinar de costas para os mosqueteiros. Ninguém fala. Enfim, Luke vai matar o agiota. Ben dá dois passos atrás e, do nada, surge a melodia I’m a Believer, dos The Monkeys. O agiota é eliminado. Sim, já vimos isto, podemos tê-lo visto parecido, mas nunca com o I’m a Believer atirado para o espectador, tão descoroçoante como letais foram as balas nas costas do agiota - que de nada se apercebeu até cair morto.

- A certo ponto, depois de um tiroteio no interior do já referido clube nocturno, os quatro mosqueteiros fogem num automóvel. De Saigão para o meio da selva passou um instante, estonteante e impossível instante. Um oficial do exército americano força-os a parar. Luke intervêm, já trabalhou, pois claro, para a CIA, e são autorizados a passar. E cruzam literalmente a guerra do Vietname, as explosões, os refugiados aos magotes, os rostos sofridos, corpos atirados para o chão. E os nossos heróis, aos SSSS, lentamente a cruzarem o campo de batalha, a gozar da exígua protecção do interior do automóvel, e a assistir como se fosse a primeira vez. Não cremos ser possível que se volte a criar uma consciência da guerra de forma tão lírica. No plano seguinte, o silêncio, excepto pela água que corre num rio próximo.

Conjunto de sequências-limite onde se fazem reflectir, portanto, instantes de consciencialização. Algumas frases que ouviremos: “Sempre agiste como quiseste!”, “Eles estão realmente a sofrer!”, “Ainda tenho muitas aspirações.”, “É um longo caminho – Vou chegar a casa!”. Instantes de uma pureza quase infantil, ou, o que não é muito diferente, religiosa.

Parte significativa do cinema ocidental vive com o que se pode chamar, pois isso aparenta, uma necessidade de fuga do palco. Um afastamento do teatro, deslocação considerada, claro, como natural pela criação de uma nova linguagem, de início, por assim dizer, demasiado contaminada pelo modelo artístico aparentemente mais próximo. O cinema oriental não se construiu exactamente assim. Basta atentar nos modelos de representação, para o arrastar vocal que nos parece querer fazer rir quando seria de calcular uma emoção oposta, a colocação do olhar, a música que nem sempre parece apropriada. A teatralidade é exposta, e Woo sabe-o, e tão bem utiliza o saber. A teatralidade torna-se fílmica, não só excesso de expressão, como de som, de cor, de deflagração, uma dança estelar de autodescoberta.

Na célebre perseguição automóvel que antecede o final de Bullet in the Head - e ao que consta apenas solução de recurso (ao ter sido recusada a primeira montagem por demasiado deprimente) -, os dois carros onde se digladiam os amigos tornados inimigos saltam lado a lado de uma posição superior (um dentro) para uma posição inferior (um fora), como se de um palco. Invasão territorial do espaço do público? Nem tanto, uma transferência para o registo, por excelência, do cinema: o fogo cruzado e a perseguição automóvel. Espaço impossível para o teatro. Mas é no sublime teatral, no entanto, que tudo vai terminar. A reunião dos três amigos, dois cobertos de sangue e um apenas crânio.

Visto de outra forma, não poderá ser uma apropriação por parte de Woo dos espaços necessários para o crescimento emocional (espaços essenciais porque assentes no confronto entre valores primordiais – bem contra o mal, limites da amizade, etc. - sublimados num desejo de perpetuidade), zonas que o cinema ocidental insiste em deixar por preencher pensando erradamente a cada filme que o faz? Sim. Obrigando-nos a nós, por sua vez, espectadores-tipo deste último, a confrontar com o seguinte: quem pretende procurar nos extremos não pode confundir um olhar adulto com um olhar adulterado. Nem sequer pode pressupor-se cínico e por isso julgar-se inimputável… A clarividência devota é necessariamente simples. Olhares novos e disponíveis precisam-se!

 

Imagem de notcoming.com