14 Julho 2019      11:26

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A breve ascensão dos Zés Ninguéns - They Live

“One of the lost masterpieces of the Hollywood left”, mais coisa menos coisa, é desta forma que Zizek começa o pequeno trecho sobre They Live (1988), de John Carpenter, no seu último documentário sobre cinema, The Pervert’s Guide to Ideology.

Curiosa (e, enfim, aceitemo-la como natural para quem viu o filme e se ficou pela superfície, a espuma das grandes ideias da qual saem convincentes resumos para um público expectante de significantes e desesperado por luzes ao fundo do túnel – e claro que não é só isso o que Zizek faz, apenas começa como lhe importa começar) a tentação de colar o filme a um ideário de esquerda, sinónimo de estado natural de rebeldia construtiva, filme que por acaso emana do coração da maior indústria alguma vez criada dentro da cultura e do entretenimento, verdadeira oficina de criação de super-heróis - e um mundo com super-heróis é, por definição, um mundo conservador.

Nas primeiras imagens, vemos surgir John Nada como se regurgitado pelos arrabaldes da grande metrópole, Los Angeles. John Nada, João Nada, João Nothing, em suma, Zé Ninguém.

Tenta arranjar trabalho, e dá-se ao trabalho de começar por onde deve, inscreve-se na segurança social. Desde logo parece certo que está por sua conta. Ajudas regimentares, nem oficiais nem oficiosas. Os serviços públicos excluem-no do mundo dos homens dentro do sistema com um ou dois simples olhares e os outros, os da margem como ele, simplesmente mais organizados, não têm espessura suficiente para estabelecer um relacionamento ou já se habituaram ao estado de dormência. Surgem lideranças no horizonte, mas ou são frágeis ou inúteis. A excepção é o individual, na pele de um amigo de ocasião. Os agregados estão definitivamente excluídos. Apenas 15 minutos de filme se passaram.

O tal amigo, Frank, é, nesse breve olhar, uma versão de John Nada, porém acomodada, identificado com e estabelecido na margem. Logo numa das primeiras conversas, Carpenter expõe as fragilidades desses olhares fugazes, pois os papéis parecem trocados. Frank expele bílis e clama por actos violentos contra os donos do sistema como resposta necessária, enquanto John, num plano-próximo do rosto melifluamente iluminado em tons lavanda com as torres da baixa em pano de fundo, diz que acredita na América, e que por essa razão cumpre as suas obrigações. E quando um rebelde adverte contra os perigos do sistema na televisão através de um sinal pirata, o seu olhar é de desdém (não só pelo rebelde, mas também pelos outros zés ninguéns, nos quais intui uma sede irrefreável).

Mas também nele está acesa a centelha do não conformismo, ele é o não conformismo. O seu olhar é curioso. Se o rebelde na TV advertiu contra o adormecimento das massas, então depressa se verifica que John é um dos que não dorme. Frank, apesar de conformado, também não, pois rapidamente fica curioso com a curiosidade de John. Tão diferentes na aparência, mas suficientemente indivíduos para não estarem definitivamente contaminados – sim, ao nível do viral, é disso que se trata.

No entretanto, intrigado com certas movimentações à sua volta, John descobre por acaso uma caixa de cartão repleta de óculos-de-sol. Postos os óculos, a verdade! Sim, ou então o real, versão soco no estômago. Real apesar de tudo a preto e branco, pois sob um filtro – ainda não é um olhar limpo.

Onde antes via uma qualquer publicidade a um champô, uma viagem às Caraíbas ou ao novo modelo da Ford, agora lê Obedece, Compra, Consome, Conforma-te, Casa e Reproduz-te, Adormece, Rejeição do Pensamento Independente. Pior ainda, onde antes via rostos reconhecíveis agora vê um misto de rostos reconhecíveis e outros monstruosos, inumanos. A propósito, são esses os que aparentam melhores condições de vida. Em cada nota de dólar, duas palavras: Nova Religião. 

Há pouco tempo para a surpresa e ainda menos espaço mental para lidar calmamente com as circunstâncias.

Entram as armas em jogo, afinal, como alguém dirá um pouco mais à frente, “No, you have two guns. You're not sorry. You're in charge”. De arma na mão, John imediatamente confronta os seres monstruosos (aliens conquistadores, digamos), conseguindo pequenas mas saborosas vitórias (mais nossas, das nossas expectativas enquanto espectadores ideais, do que dele, em abono da verdade), até que volta à estaca zero traído por um dos seus (dos nossos).

Resta-lhe Frank…

O jogo, e sobre isso já se levantou a ponta do véu, nunca é verdadeiramente congruente, o que é parte não despicienda do seu fascínio. Desde que o aceitemos, como aceitamos as nossas contradições (ou seja, o humano livre ou potencialmente livre como espaço intrínseco de dissonância). Sob a aparente simplicidade de processos, pois parece que estamos sempre a ver de acordo com as nossas expectações, anseios talvez seja melhor palavra – excluindo John Nada desta equação, apesar de tudo, pois também serve de farol –, as personagens livres ou potencialmente livres não param de contrariar actos anteriores. As que não são livres, não contam, só esperam pelo momento certo ao preço certo. É também de compra e venda que trata este filme.

Veja-se o caso de Frank, que podendo excluir-se e continuar a sua vida longe do alvoroço, apesar de recusar o pedido de ajuda numa primeira investida, acaba por ir ter com John (já wanted man), levando-lhe one week’s pay, the best I can do. O vício da curiosidade… É o mesmo que resiste até ao limite das suas forças a ver, a olhar a realidade de frente – E a célebre cena de luta entre Frank e John no beco imundo é mesmo umas das melhores da história do cinema feito e por fazer. Longa (5.30 minutos), sem cedências, sangrenta, devidamente condimentada com expressões para a lenda, sonora.

Claro que uma vez observada a suja realidade, logo se junta à demanda, como o fazem todos os homens bons em todos os filmes (bons e menos bons).

E a partir desse momento são dois, doridos e ensanguentados, de armas em punho. Cada um a fingir que precisa de um master plan, simplesmente desejosos de encontrar uma aberta ou uma parede que possam derrubar. Filme bélico por excelência, como tantos de Carpenter, que faz transbordar os vícios intrínsecos de uma certa América (que terá começado nos anos 50 e atingido o zénite nos anos 80), é também o sonho-molhado de vingança dos Zés Ninguéns.    

Mas para quê? Com que objectivo? Haverá salvação ou hipótese de redenção algures? Não, este é um filme de John Carpenter. É um caminho solitário. Eles, aliens e colaboracionistas, já dominam o show por completo. Expor e destruir é a (única) opção. Morrer de dedo médio em riste com um sorriso nos lábios.

A individualidade responsável implica condição de pertença. Não existindo esta, não há dever moral dos Zés Ninguéns para com a Sociedade. Muitos não concordarão, fieis ao sonho da Humanidade. Chesterton, por exemplo, como digno representante de uma SMLED, i.e., uma Sociedade Moderna Livre de Eventos Drásticos, para bem dos seus débeis pecados, haveria de detestar certos filmes de John Carpenter, e disso retirar o parco e singelo prazer de um dia de reflexão.

Quanto a Carpenter, They Live, obra-prima absoluta, servira de aquecimento, anos depois iria ainda mais longe, em Escape from L. A. (1996), dando ao seu protagonista, call me Snake, a hipótese de sobreviver, substituindo o dedo médio em riste por um valente pontapé no cu do Mundo.

São só filmes, não se preocupem.

 

 

Imagem de vox-cdn.com