8 Outubro 2017      11:43

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BLUE VELVET/ 1986 (Parte 1)

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Blue Velvet (ou as dores de crescimento segundo o método Lynch):

O eterno retorno, o demónio de Nietzsche que segredava “a vida, viveste-a e terás de vivê-la uma e outra vez… Na dor e no prazer…”, entoa pelos recantos mais lodosos, e definitivamente soa a anátema para o espectador vivo e inútil que deixou que 30 anos passassem, muitos dos quais a encolher os ombros. A vida é um fardo que pobremente a maioria aceita sem sobressaltos, dizia alguém, carpinteiro de profissão, Mestre por razões que não fazem mais do que vir ao caso (afinal, todos ou quase todos a seu tempo recolhemos favor de um Carpinteiro que os conduz pela mão), na época em que a memória não passava de um jogo com regras de futuro.

Os tempos são outros, as soluções terão de ser outras… As coisas não têm, em rigor, de ser assim, mas pode-se ser liberto por um filme? Ou deveríamos antes dizer salvo? Ou, pelo menos, recuperado? Ou nada disso faz sentido?

Uma hipótese - Blue Velvet, o filme, se possível, de uma vida. E qual é o olhar que lhe devemos? - Divago com o plural quando o que pretendo é uno… Necessariamente um olhar do porvir, ainda que com regras próprias em que o correr do tempo se legitima através de sobressaltos e não pela lógica direcção da seta temporal (se em matemática, como um número imaginário).

Um relato muito breve (x): a primeira vez (iy):

A meio de um Verão quente e ainda sem ano, o Carpinteiro virou-se para o Pai e estendeu-lhe a mão com duas cassetes de vídeo, a uma referiu-se como vem e vê, e com o dedo indicador da mão que sobrava gesticulou (do olho estendeu para o infinito), à outra por Blue Velvet, no original pois não traduzível; sabia e estranhei, Veludo Azul não soava menos belo. Sabes o que não consigo esquecer, disse o Pai sobre este último, a música de fundo.

A música de fundo, tão novo e já com direito a uma memória efectiva (vício juvenil de acumulação estranhezas) –Pai, posso ir contigo ao cinema? Não, filho, ainda não é para ti! O Pai foi então ao cinema, eu tive de esperar pela minha vez. No dia seguinte, foi à ‘belíssima’ música de fundo que o Pai se referiu em conversa comum certo amigo, como se apenas desse espaço incorpóreo (e não através do todo cinematográfico, que na juventude por alguma razão julgamos palpável) se pudesse ver o filme.

Dois anos depois, ei-lo, portanto, com a portabilidade que o tornava acessível, à disposição desde que descobrisse a cassete escondida… Não foi difícil, pois estava lá para ser encontrada. Não conhecia o estado de ansiedade como condição, bastaram-me dez minutos de Blue Velvet.

E tudo começou nos claros / escuros, escuros / claros, que anos depois novos e resolutivo solhares interiores haviam de tornar a razão de ser de um cinema inigualável. O método Lynch é afinal assim tão simples.

(Escuro) Genérico sobre um pano ondulado –de onde provém sombras –de veludo azul. Música concentracionária. (Claro) Céu azul, rosas vermelhas e cerca branca, crianças, jardins, rosas amarelas e cerca branca, carro de bombeiros em pose, homem a regar o jardim. Música expansiva. (Harmonia quebrada –Momento de transição) Homem tem uma apoplexia, música distorce, homem cai, aparece um bebé no enquadramento e um cão brinca com a água que sai sem controlo da mangueira (nem bebé nem cão podem ser parte da solução), música desaparece como se expelida para o vácuo, câmara sobre a relva, (Escuro) por baixo da relva, no subsolo, as profundezas tornam-se som malsinado, formigas (?) devoram o que parece ser um besouro. Da luz para o negro. Só se cruza tal fronteira aceitando a deformação que isso implica. Mas a aceitação implica conhecimento que não se tem (o bebé e o cão). Está lançada a rede.

(Claro) Regresso à luz. Planos de água, rosto sorridente, e então: Jeffrey! Quem? Enfim, uma figura que reconheço sempre que perante o espelho… O escuro aguarda!

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Cidade de Lumberton. Jeffrey, entre 18 e 20 anos, o filho do homem que tombou no jardim, por essa razão retorna a casa; anda na universidade. Após uma visita ao hospital, ao atravessar um baldio, encontra uma orelha humana que entrega à polícia. Certa noite –não pode ser nessa noite apesar de o parecer –, da filha do agente que antes o recebera em sua casa com insinuações cúmplices de um necessário silêncio sobre o caso, a inocente Sandy, surge um nome: Dorothy Vallens, cantora de cabaret. Auxiliado por Sandy, não resiste ao mistério e vai ao encontro da bela (não o sabe mas isto é cinema) Dorothy. Encontra-a, mulher destroçada, e [pior (ou melhor)] encontra o diabo escondido. Dois, aliás, um, Frank, diabo da noite; o outro, aquele que se esconde no seu íntimo.

A via de acesso é evidentemente sexual e tem um nome: Isabella Rossellini. Filha de Ingrid e de Roberto, mas naquela primeira vez tão anónima quanto qualquer estranha acabada de se mudar para a casa ao lado. Tal como Frank, só anos depois Dennis Hopper.

Frank, como todos ou quase todos os diabos do básico e adolescência, é mais estranho e arrebatador do que malévolo. Inesperadamente próximo. Diz coisas admiráveis como “Fuck you, you fucking fuck!” ou “Let’s fuck, I’ll fuck anything that moves!”, inspira um gás qualquer que o enlouquece e vive num mundo só seu, escuro e incomum, “Now it’s dark”, apaga-se a luz e Frank pode finalmente viver. E como vive!

Claro / escuro, escuro / claro -constantemente; Jeffrey, na noite em que sai de casa para o encontro com o mistério, vem da luz do seu quarto e entra no escuro da escadaria de acesso à sala; Sandy, pelo contrário, qual anjo, ainda nessa noite, vem do escuro para luz.

A noite é a ocasião das revelações, mas com Lynch não tratamos com regularidades ou transparências, os anjos têm gradações sem nunca, no entanto, atingirem a pureza.

Nem sequer Sandy, que em plena luz do dia pouco ou nada hesita em entrar no carro de Jeffrey, apesar do namorado; desde que garanta não ser apanhada tudo bem. Jeffrey também sorri banhado por luz quando fala da beleza do mistério (leia-se possível homicídio). A inocência em Lynch nunca é inocente. Não existe senão como potenciador não isento de armadilhas.             

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E ainda não tendo apreendido o anterior, pode finalmente entrar o imberbe público, munido da inconsciência da consciência, neste filme / objecto feito para se ver quando não se tem idade para tal (por isso em parte objecto, pois inacessível em sala);o filme em teoria é para maiores de 18 anos, Jeffrey tem entre 18 e 20, o espectador ideal deverá poder germinar em Jeffrey, logo não deverá ter mais de 13-15 anos.

Garantida a primeira vez, a decisão sobre os mistérios, que também são de amor, não é o fim, e nem importa o tipo de caminho –desde que caminho, contudo, como manter os 13-15 anos durante as múltiplas visualizações tornadas necessidade ao longo da vida? De outra forma, como manter a integridade do olhar?

Por fim, um retorno que vale a pena (?)

 

Imagem de bfi.org.uk