A memória exprime uma relação social pela hegemonia na sociedade. O que uma sociedade escolhe preservar na sua memória coletiva forma o solo fértil para o modelo de sociedade em que se quer viver. A memória é, por isso, uma batalha constante.
Cada indivíduo carrega a sua própria história, composta por vivências pessoais e relatos de terceiros. Se a memória que cada um tem da sua própria vida se vai modificando e se desvanece à medida que o tempo passa, o mesmo acontece com acontecimentos que não vivemos na primeira pessoa e que nos são narrados das mais diferentes formas.
Mas será que estas duas memórias são independentes uma da outra? Será que não participam de igual forma na composição da narrativa do passado que nós temos sobre nós próprios, mas também na lembrança de acontecimentos coletivos que dão sentido e explicam o porquê de vivermos como vivemos?
A memória, tal como a história, não é o passado em si, é sempre uma interpretação do que aconteceu. Se a história está refém das fontes, a memória está refém das narrativas que se desejam ditar num determinado momento.
Como comummente se diz, os vencedores escrevem a história. Isso é evidente nos relatos sobre os lusitanos, quase exclusivamente narrados por autores romanos, ou nos povos indígenas da África e da América, cuja história foi filtrada pelas lentes de quem os dominou.
A memória está novamente em jogo, como não se via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O surgimento de partidos de extrema-direita um pouco por todo o Ocidente evidencia essa disputa. Surge então a pergunta: Porque é que os herdeiros políticos e ideológicos dos regimes mais sanguinários da história da humanidade estão a ganhar espaço e influência como até então?
Parte da resposta pode estar nas democracias liberais, incapazes de responder devidamente aos anseios e às preocupações das populações, mas também podemos responsabilizar as novas tecnologias que facilitam a perpetuação e amplificação de mensagens simplistas, falsas e enganadoras.
Parece-me que é um pouco das duas, com uma ramificação comum que desemboca na falta de memória. É curioso constatar que foi exatamente com o desaparecimento das gerações que viveram as décadas 1930 e 1940 que o discurso da extrema-direita voltou a entrar no nosso cotidiano.
Ouvia, recentemente, o Filosofo José Gil refletir sobre a falta de memória que as novas gerações têm sobre o passado. Introduziu um conceito que me parece interessante e é mais um contributo na resposta à pergunta que coloquei.
José Gil afirma que a nossa sociedade não está organizada para impedir a crueldade, o não reconhecimento do outro, chamando a isso a caotização da sociedade. As novas tecnologias de informação vieram avançar esta tendência, pois é difícil ter empatia por terceiros quando eles só nos aparecem através de um ecrã.
Conclui que os jovens, diante do caos social, buscam ordem e segurança, sem perceber que discursos de ódio oferecem uma falsa sensação de estabilidade, alimentando o desejo por soluções menos livres e mais autoritárias.
Exige, por fim, reconhecer que a memória não é apenas uma ferramenta para o entendimento do passado, mas um pilar essencial para moldar o presente e construir o futuro.
A batalha pela memória é, na verdade, uma disputa por narrativas que definem quem somos e quem queremos ser enquanto sociedade. Sem um compromisso coletivo com a preservação e a transmissão de memórias significativas, corremos o risco de repetir erros históricos. Cabe a todos nós, individual e coletivamente, cultivar a memória como um antídoto contra a desumanização e o autoritarismo.