27 Outubro 2019      12:29

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Alice nas Cidades

Alice nas Cidades (1974), de Wim Wenders

Ele anda em viagem pela América e, entretanto, perdeu a essência – transformou-se, por assim dizer, num corpo sem sentido (sem interpretação no contexto – para lá de Nova Iorque, nada se distingue, nada sobressai, diz a certa altura, pressentindo e logo avisando que também ele já se tornou parte dessa amálgama indiscernível). Se quisermos o raciocínio num outro limite, um significante que se distanciou enormemente do significado que lhe corresponde.

Um dia, aparece-lhe Alice... e a viagem, ainda que noutros termos e noutro lugar, prossegue.

Ela ainda não é verdadeiramente, não tem idade suficiente para isso. Também a meio de um trajecto, num fluxo constante e, na sua perspectiva, interminável. Sem pai e a reboque da mãe, cuja distância pressente (o mesmo verbo, por necessidade) mas não alcança, porque, lá está, felizmente ainda não pode compreender. Se algo pode ligar uma criança à terra é a ideia sustentada de uma família, que Alice eventualmente possui…tanto quanto se pode possuir uma indeterminação. Há também uma avó algures.

Uma vez que, ainda que partindo de pontos tão distantes quanto o concebível, chegaram a um tempo-vórtice semelhante, são de certo modo o par ideal para um tempo tão impreciso que se tornou impossível de classificar (que retém a maior parte dos sons e só existe a preto e branco, por exemplo, numa calma tão artificiosa que só pode remeter para a simulação – e, nesse caso, quem mexe os cordelinhos?).

Há filmes assim. Durante décadas passam quase despercebidos; até que, num certo dia, o espectador ideal acorda, fica na cama um bocado, mãos entrelaçadas atrás da cabeça, a rememorar sobre o filme que viu na noite anterior, e eis que subitamente se torna claro: Alice nas Cidades é o melhor filme Wim Wenders. 

 

Imagem de cinedogs.gr