6 Abril 2020      17:34

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Adeus, Europa

É o título do filme que retrata o exílio do magnânimo escritor Stefan Zweig no Brasil, obrigado a abandonar a sua Europa que se auto destruía na Segunda Guerra Mundial, e que o perseguia na condição de judeu. Zweig, à parte de ser o escritor que produziu a melhor peça literária que alguma vez tive o privilégio de ler, denominada “Carta de uma desconhecida”, entre outras igualmente brilhantes como “Amok”, “O Medo”, “Novela de Xadrez”, ou “Vinte e quatro horas da vida de uma mulher”, era também um europeísta convicto, que já nos anos 30 sonhava com uma Europa onde reinava a paz entre os povos, por onde pudesse viajar sem passaporte e sem câmbios de moeda entre democracias.

Zweig não chegou a ver o seu sonho concretizar-se. Em pleno exílio, em 1942, quando a vitória dos alemães era o cenário mais provável, e não conseguindo conceber viver num mundo dominado pela desumanidade nazi, pôs termo à própria vida.

Hoje, este título volta a ter simbolismo, não por estarmos à beira de um domínio mundial de uma visão ideológica hedionda, ou da destruição física do nosso canto do mundo, mas por estarmos muito perto de assistir ao colapso de uma das maiores primaveras de esperança que a civilização alguma vez produziu, a Europa unida de Helsínquia a Roma, de Dublin a Zagreb e de Lisboa a Atenas, a Europa do perdão entre Franceses e Alemães e da união entre povos Latinos, Germânicos e Eslavos.

Face à crise pandémica que enfrentamos, volta a vir ao de cima o passageiro negro do espírito europeu, o individualismo insolidário, que mais uma vez ameaça destruir a estabilidade europeia. Foi precisamente esse individualismo insolidário e imprudente o responsável por séculos de instabilidade constante que minava o equilíbrio de poderes entre nações, resultando em constantes crises e derramamentos de sangue.
Foi, nem mais nem menos, no rescaldo do pior derramamento de sangue da história da humanidade, a 2ª Guerra Mundial, que as elites europeias pela mão de Schuman, De Gasperi, Adenauer entre outros, acordaram em erguer uma estrutura supra-nacional que prevenisse todas as guerras do futuro, estrutura para onde seriam delegadas competências que até então eram exclusivas de cada nação, onde, a partir desse momento, teria de existir também uma relação de responsabilidade e confiança transnacionais, mas sobretudo, de solidariedade.

Schuman não deixou de querer frisar esse parâmetro na sua famosa declaração: «a Europa não se fará de uma só vez, nem de acordo com um plano único. Far-se-á através de realizações concretas que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto.»

No final da guerra, depois de assistirem a tanta destruição massiva, a tanto derramamento de sangue, a um desastre económico sem precedentes, estes homens empenharam-se em criar uma instituição que prevenisse ao máximo este tipo de crises e que protegesse os europeus como um todo, quando estas fossem inevitáveis (como a que vivemos hoje).
Aquilo a que estamos a assistir de momento é precisamente ao contrário destas premissas. Não bastava a reacção à crise pandémica por parte da UE ser titubeante, como também já se ouvem, nos corredores, reacções altamente repugnantes (como António Costa as adjectivou, e bem) dirigidas entre países, como são disso exemplo as palavras abjectas do ministro das finanças holandês.

Uma vez mais, a Europa, face ao pavor, entra em parálise e em clima interno de apontar de dedos, no lugar de acudir com frieza, responsabilidade e pragmatismo face a uma situação de crise, situações de crise essas, para as quais, a União Europeia foi precisamente criada, para as evitar ou para as minimizar, e proteger os povos à sua guarda. Uma vez mais, a UE revela ser um líder hesitante, trémulo e inapto para a sua própria função.
Nessa condição o projecto quebra novamente o acordo sócio-biológico entre líderes e subordinados. Acordo esse que é tão somente uma das características sociais humanas mais primitivas no nosso subconsciente individual e colectivo, o acordo onde os subordinados aceitam servir e proteger o seu líder, em troca de protecção, segurança e prosperidade. Quando o líder falha em assegurar uma destas três premissas, perde a confiança dos seus subordinados, que começam inconscientemente, como que em espírito de tribo, a procurar uma nova liderança, que julguem estes capaz de lhes assegurar as ditas protecção, segurança e prosperidade.

Se a UE não inverter este padrão o mais rápido possível, e não começar a agir com a devida frieza e com o devido pragmatismo, está condenada ao colapso. Não tardará ao ressurgimento do sentimento de “se a UE não nos serve nestas situações, não nos serve para nada”, pois foi precisamente para estas situações que esta foi pensada, desenhada e criada, todos os restantes benefícios (mercado, moeda única, fronteiras abertas) são meros resultados sem força mobilizadora. Protecção, segurança e prosperidade. São estas as premissas que geram mobilização social, paixões políticas e sentimentos extremos, sejam eles de apreço ou de repulsa.

Se a UE não entende esta relação, significa que a própria UE já não sabe porque é que existe.

Foi precisamente desta Europa que fugiu Stefan Zweig, uma Europa confusa e em crise de identidade, que não conseguiu munir-se de defesas que prevenissem a sua auto-destruição e a morte em massa do seu povo. 
Uma Europa de outros tempos, que, tal como agora, encontrava dificuldades em servir convenientemente os seus subordinados.