14 Janeiro 2017      08:30

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70 MIL RÉIS

"PARALELO 39N"

Uma história tantas vezes contada e vivida

 

O dinheiro era, naquela altura, uma fortuna. Ninguém tinha tanto dinheiro nas redondezas e, se o tivesse, ninguém sabia o que fazer com ele. Era tanto dinheiro e Exposto era um homem bom, um lavrador que partilhava aquilo que tinha com os outros mais pobres. Dava trabalho pago com justeza, ajudava aqueles que a ele se dirigiam. Não confiava ainda em Bancos e os que havia ficavam muito longe da Herdade. Por isso, escondia o dinheiro num buraco, na arramada, debaixo do boi mais feroz que só a ele dava mão. O animal dormia em cima do dinheiro sem saber o valor da riqueza que lhe acomodava o lombo durante a noite.  

70 mil réis era menos de metade do que tinha, o resto estava na sua propriedade, animais, sementeiras, hortas sem fim, cortiça e outros géneros. Exposto era um homem feliz, bondoso. Tinha uma família que amava como a família e os amigos o amavam a ele. E o amor não é uma coisa que se possa evitar na vida. Mesmo que não se veja, e nunca se vê materialmente, é o laço mais forte entre as pessoas. Pode ter várias formas e sempre terá. Nenhum ser humano ou qualquer outro ser ama da mesma forma. É por isso que o amor é uma coisa tão difícil de descrever, de conhecer ou mesmo viver. Por vezes, transforma-se numa coisa estranha, inexplicável. Exposto era amado e amava igualmente.

Há pessoas que não têm amor e por isso custa-lhes o amor e a dedicação que, enquanto seres humanos, transmitem aos outros. Esses, estão mortos interiormente. As vísceras são negras e cheias de sentimentos obscuros que tornam os olhos poderosos quando olham o bem que os outros angariaram. A maldade corroí-lhes o sangue e destrói as veias e torna os ossos mais fracos, mas nem por isso deixam de a viver como se fosse o seu alimento preferido, a sua seiva, a linfa que, como planta daninha, vive e se mantém, secando tudo à sua volta.

Exposto tinha poucos vizinhos. Porém, entre esses, no cimo do monte vivia um vizinho que sempre olhava o que Exposto construíra com o seu suor, de cima para baixo. Quando olhava para a vida de Exposto, os seus olhos enchiam-se desse sangue maligno que ferve e lança cobranto ao que vê. Asco era o seu nome. Asco invejava tudo o que Exposto tinha construído. Nunca fora capaz de construir o mesmo que o vizinho do monte abaixo conseguira. Isso consumia-o por dentro e ansiava a cada dia, destruir tudo o que o outro conseguira para poder ele erguer-se como o homem mais rico e mais considerado em tudo o que a vista avistasse. Não sabia ele que nunca o conseguiria porque, sem amigos e sem deitar a mão ao próximo, ao mais pobre e enfermo, seria um homem de verdade. Não tinha tido nunca um gesto de piedade. Teria as suas razões porque para se ser mau, tem de se ter algum objetivo, um motivo que faça com que as ações sejam justificadas.

Exposto vivia sem conhecimento da maldade de Asco que lhe sorria quando o via. Desdentado, o homem imitava o viver do primeiro. Asco espiava, dia e noite, o que Exposto fazia, tudo era justificação para se aproximar. O tempo, por mais que passasse e por melhores coisas lhe trouxesse, não lhe tirava da ideia a obsessão e a angústia que lhe trazia o viver do vizinho. Exposto aproveitava a noitinha para por mais moedas no esconderijo. Depois de vender as sementeiras ou a cortiça, guardava aqui as suas poupanças. Não imaginava nunca que houvesse quem lhe quisesse tanto mal. Asco queria e dissimulava-se continuadamente. Nessa noitinha, veio, com as botas cardeadas enlameadas pois chovera toda a tarde, espreitar o vizinho na esperança de conseguir descobrir o segredo. Faria o que fosse possível para prejudicar o outro. Tinha raiva da sua vida e da sua bondade, que nunca poderia ter.

Conseguiu, através de uma racha na taipa e no tapume entre os troncos de madeira que eram a parede da arramada, ver onde Exposto escondia o dinheiro. Voltou para casa com as veias rasgando a parte branca mais iluminadas que nunca e com um olhar de louvo desvairado e alucinado. O seu sorriso desdentado fortalecia-se a cada momento. Sabia o que fazer e isso dava-lhe alento.

Noite alta, quando os bichos dormiam descansados, dera uns pós aos cães para que não acordassem. Todos dormiam sem saber aquilo que, sabendo, não os deixaria dormir durante horas. Asco veio de égua, atou o animal numa azinheira próxima, trouxe uma lança na mão e entrou na arramada. Aproximando-se do bicho, calado, desfechou um gole certeiro ao coração do animal que o matou sem que o pobre defensor das poupanças do dono pudesse dar de vaia e pedir que o acudissem. Tirou o saco com 70 mil réis e eliminou as pistas que o pudessem denunciar, não sem acender um cigarro junto do palheiro e deitar fogo a toda a palha guardada. Apressou-se a fugir, agarrando na égua e montando-se no animal começou a cavalgar. O saco do dinheiro ia numa mão e a arreata na outra.

Na fuga, endrominado pela cegueira do dinheiro e no tom apressado com que o animal corria, Asco distraiu-se e, passando junto a um ramo de azinheira já nas suas terras, não se conseguiu desviar a o ramo mais baixo, quase lhe arrancou a cabeça, partindo o pescoço do homem que queria, mais do que ser rico, ver o vizinho na miséria. Asco morreu instantaneamente, ficando como que pendurado na azinheira.

Todos os animais começaram a ladrar e Exposto e a família acordaram. Conseguiram ainda nessa noite apagar o fogo e, quando o dia nasceu, alertados pelo moço de recados, viram que o vizinho ficara pendurado na azinheira, com o saco de 70 mil réis deitado no chão a seus pés. A égua pastava perto, como se nada fosse.

Exposto decidiu dar-lhe um funeral em condições e ajudar a família do homem que tanto mal lhe fizera, não mostrando rancor algum. O palheiro foi reconstruído por todos e o boi, depois de esquartejado, foi dividido pelos que mais precisavam, partilhando a dádiva de quem tem e ama verdadeiramente sem que o sangue transporte ervas daninhas e a necessidade de viver, querendo mal ao próximo.