4 Janeiro 2021      09:58

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“Cultura de Cancelamento”, o cianeto das democracias

A expressão “cultura de cancelamento” tem vindo a marcar cada vez mais uma presença frequente no palavreado da opinião pública ocidental, sendo ela todo um conceito ancestralíssimo nas várias sociedades humanas ao longo da nossa história civilizacional. Os gregos chamavam-lhe “ostracismo”, que consistia numa punição onde quem fosse declarado culpado de atentados contra a liberdade pública era severamente condenado a abandonar a Cidade-Estado durante um período de dez anos.

A cultura de cancelamento, como forma de ostracismo moderno, consiste num modus operandi semelhante, embora adaptado à presente realidade e modos de vida semi-virtuais e todas as variantes possíveis dentro do domínio público.

Hoje, já não é necessário ser cometido um atentado à liberdade pública, é suficiente que alguém expresse uma opinião com a qual discordemos, ao passo que o exílio foi substituído pelo enxovalho público extremo e/ou pelo boicote.

Temos assistido a associações de estudantes a boicotarem conferências de âmbito académico em virtude do orador ter posições políticas contrárias, estátuas a serem ignorantemente vandalizadas devido a posições ou acções isoladas de figuras de idoneidade históricas (como Winston Churchill ou o Padre António Vieira), figuras públicas a serem vítimas de boicotes e enxovalhos públicos à conta de declarações ou atitudes que protagonizaram há décadas, entre outras situações, muitas delas, envoltas de um total absurdismo, desconhecimento factual e descontextualização.

As circunstâncias dos tempos determinam que a tolerância e o perdão, dois dos mais eficientes elementos agregadores das sociedades, deixaram de ter importância e peso no dia a dia da sociedade civil. Tornou-se mais importante ter razão a todo o custo, desenterrar erros e infâmias do passado com vista a boicotar o futuro, ou exacerbar os erros do presente e classificá-los de imperdoáveis. Situações que colocam os visados (indivíduos ou grupos sociais) numa situação definitiva de marginalidade. Definitiva porque, hoje, errar tornou-se proibido, e o arrependimento tornou-se insignificante. O erro, que antes era o veículo para a aprendizagem, hoje, tornou-se num veículo para o julgamento público.

Face a esta realidade onde a redenção de nada vale e onde a marginalização é a única possibilidade, a reacção natural de todo o ser humano em querer ser aceite vem ao de cima, e na vastidão das sociedades, são sempre as falanges mais obscuras que fornecem o desejado abrigo aos renegados, ampliando os fossos e os muros entre pessoas que, noutras circunstâncias, estariam ligados por pontes de tolerância e respeito mútuo, rasgando sociedades ao meio e instaurando a polarização e a conflitualidade permanente.

Regimes como a democracia apenas conseguem sobreviver em cenários de tolerância e perdão. Conflitualidade permanente e polarização social são os principais responsáveis pela destruição da ética democrática e, consequentemente, das instituições que a sustentam.

É indispensável reinserir a ideia de que todos ao longo da vida cometemos erros hediondos, e que por vezes não temos a capacidade de os fazer passar despercebidos, ou seja, somos apanhados, faz parte do processo de existir neste mundo, e faz parte do processo de aprender ao longo da vida com tudo aquilo que vamos fazendo de errado. Conceder o direito a errar é um gesto de humanidade, assim como reconhecer um pedido de desculpas e arrependimento genuíno, os erros em si já transportam a sua própria penitência e contrapartidas que levam ao arrependimento. Esta cultura de cancelamento é um comportamento altamente tóxico, alem de polarizar sociedades, os efeitos para a saúde mental são devastadores, condenar alguém ao isolamento perpétuo e ao sentimento de solidão é fazer alguém passar por uma realidade difícil de suportar, levando a quadros de ansiedade e depressão que poderão ser, em última instância, fatais. Sentir que o mundo inteiro desistiu de nós sem nos dar uma oportunidade de arrependimento e de emenda é dos piores sentimentos a que um ser humano pode ser condenado.

 

Como disse Álvaro de Campos no seu “Poema em linha recta”:

 

(...) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

 

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo? (...)