13 Junho 2015      08:51

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TERMINAL DE AEROPORTO

Os terminais dos aeroportos são sítios estranhos onde as pessoas se cruzam, olham, ignoram, seguem viagem sem que muitas se voltem a ver. Os terminais dos aeroportos são um sítio de passagem para tantos que anseiam pelo regresso a casa. A permanência de cada um de nós neles resume-se a poucas horas e, em cada movimento dos transeuntes entende-se a extensão da sua demora no terminal. Os passos apressados, as caras preocupadas de quem corre em busca da porta para embarcar e está atrasado para o voo. Os que se passeiam lentamente nos corredores do terminal, esperando que o tempo passe e as horas corram nos ponteiros do relógio. Todos são o terminal. Em cada área, um visor que mostra as horas dos voos, o tempo que falta para anunciar a porta de embarque, através dos grandes vidros, que são paredes, veem-se os aviões que chegam e partem, as suas asas longas em contraste com as pequenas janelas, os símbolos das companhias aéreas que representam o mundo. Num terminal, toda a diferença étnica que caracteriza o ser humano. Todas as pessoas querem chegar ao destino. Todas as pessoas sabem que a sua casa não é ali e que os aviões são parte do percurso de vida, que foram criados pelos Homens para se chegar mais depressa a um qualquer lugar. No futuro, os Homens vão inventar outra coisa para chegarem ainda mais depressa. No terminal, entre produtos que se vendem em lojas que não conseguimos evitar no percurso e em pequenos cafés que acomodam os que esperam durante algum tempo, os minutos vão decrescendo para a hora do voo.

Maria chegara a Frankfurt pouco tempo antes das seis da tarde de um dia de Inverno frio e chuvoso, chegara a uma cidade longe da sua aldeia em Trás-os-Montes. Desembarcou na porta A37 e Frankfturt é o seu destino. Esperam-na lá fora, depois das formalidades de imigração, quase já inexistentes e após levantar a sua bagagem, o filho, a nora e os netos. Esta foi a primeira vez que Maria andou de avião. Depois da morte do marido, recente, o filho convenceu-a a passar o Natal consigo e com os netos. A Alemanha é um país estranho para si. Além de não entender o que dizem, tudo ali lhe prende a liberdade de movimentos. Só a anima o facto de poder matar as saudades da família… a distância não lhe permite vê-la mais do que escassas vezes em cada década da sua vida que, todos sabemos, não será longa. Carrega, nos braços, sacos cheios de prendas que traz para os netos e carrega o peso do medo e da adrenalina da primeira viagem que fez.

Maria partiu do Porto e, guiada por todos, esforçou-se para entrar no avião sem que mostrasse o seu receio em se sentar num pássaro gigante que sobe pelos ares, que cria uma pressão intensa nos ouvidos, que se aguenta, durante horas, a mais de 20.000 pés acima do chão. Tinha medo, mas o medo passou e foi substituído pela adrenalina provocada pela aceleração dos motores e pelo descolar. Já estava no ar. O medo voltava e só desapareceria quando, finalmente, o avião parasse no chão de Frankfurt e toda a gente se levantasse apressadamente dos seus lugares para recolher as bagagens e saírem antes dos outros, na ânsia de chegarem mais rápido a algum lugar. O ser humano não gosta de esperar, pensaria. E o facto era que todos corriam, uns para não perder a próxima ligação que os levaria ao destino e outros, simplesmente, para chegarem ao Terminal, um porto seguro onde a expressão pés assentes na terra ganha outro significado. Maria sentiu que o Terminal era o seu porto seguro no momento em que saiu da manga de acesso ao avião, que percorreu apenas para chegar à saída onde o seu verdadeiro porto seguro a esperava. Pensava nos olhos sorridentes dos seus meninos, novinhos, educados numa terra que fala uma língua estranha. O seu filho e a sua nora olhavam para o placard das chegadas e viam que o avião aterrara. Era uma questão de minutos até que a sua mãe aparecesse na porta que se abria e fechava. Esperavam ver uma cara conhecida. Maria sabia que a esperavam e que a viagem acabava no terminal onde voltaria semanas depois. Mas não pensava nisso agora.

André, 35 anos, advogado de profissão e surfista de paixão, tinha passado uns dias em Bali, onde procurou as melhores ondas e onde sonhou com o mar e com a adrenalina que a viagem longa, a primeira para este destino, lhe causara. André regressava a casa no mesmo momento que Maria chegava a uma casa que seria a sua durante alguns dias. Percorrera já meio mundo. Primeiro, saindo de Bali, às 23:40, num voo que o levaria a Singapura, ficou no Terminal durante algumas horas, aguardando o próximo destino. André espantava-se com o conforto deste lugar, com a imensidão de corredores amaciados com carpetes recorrentemente aspiradas e com os jardins internos que faziam do Terminal um sítio amigável onde poderia estar e recordar a paixão que vivera. No jardim exterior sentiu o calor de Singapura e pensou que o próximo destino já não seria assim… como era possível que, em horas, o mundo para si mudasse tanto? Pensou que os Homens construíram os aviões e os Terminais para chegarem mais depressa aos sítios onde querem ir e onde alguém os conhece. Em Singapura, André não conhecia ninguém. Faltavam doze horas para chegar a Frankfurt. Viajando num avião dos maiores que o mundo já viu, não tinha medo de embarcar e o regresso fazia-se por um caminho já conhecido.

Doze horas depois, chegou a Frankfurt onde sentiu o Terminal frio, o calor de Singapura desparecera, já num dia quase escurecido pelas nuvens e pela chuva que caía. André não tinha pressa de chegar ao Terminal, ao contrário de todos os outros, mas, tal como Maria, ansiava sentar-se num pequeno café, numa sala aquecida pelo calor artificial que o ar condicionado criava. Ao sair, olhou para os visores onde se amontoavam ordenadamente as partidas e viu que o Terminal não era o mesmo. Caminhou num percurso longo, sujeito às regras da imigração e dos longos tapetes rolantes e chegou ao Terminal A, o que o levaria a casa. Agora queria só sentar-se perto da porta de embarque que o levaria a outro avião, que, por sua vez, o levaria a casa. André não tinha estado longe muito tempo, mas tinha saudades do cheiro da sua terra. A nossa terra, aquela onde começamos a respirar e aprendemos a olhar e ver, a diferenciar as coisas que vemos, cheiramos e sentimos, tem um cheiro diferente de todos os outros lugares por onde passamos, onde estamos e onde ficamos.

No Terminal, há um corredor que serve de passagem para o céu aberto, onde as pessoas se cruzam em sentidos opostos. À hora em que um chegava e o outro se preparava para aguardar a partida de novo, Maria e André cruzam-se, olham-se por breves instantes como se olha um estranho e, sem que o olhar se prolongue, continuam a sua viagem. Não querem saber quem são ou para onde vão. São anónimos como o são os Terminais, lugares onde, das pessoas que passam, permanece, apenas, a memória registada nas câmaras de segurança.