12 Setembro 2015      02:17

Está aqui

SORRISO

       Eu sorri, sabes? Sorri tanto quando te vi chegar que os meus olhos se inundaram de água salgada de felicidade. Sorri como já tinha sorrido antes tantas vezes. Sabes que nós, aqui, neste hospital pintado de paredes monocromáticas e sem sensibilidades, não sorrimos. Somos manipulados para não sorrir nem deixar que o nosso rosto passe as memórias do verão deslocado para camas de hospital.

 

Mas sorri, sorri quando te vi chegar. A tua cara iluminada, tão feliz por me ver e tão sorridente em si. A tez marcada pelo Sol lá de fora, pelo Sol que já não vejo com os mesmos olhos de há anos. Vinhas a sorrir, vestido de t-shirt colorida e calças de ganga a condizer e vinhas a sorrir, é do que me lembro. Os teus cabelos soltos, longos e castanhos, provavelmente penteados com a escova de prata que te ofereci um dia. Os teus cabelos eram castanhos e brilhavam à luz do dia. Não como os meus que são pálidos e já não têm cor ou vida. Estão estragados pelas luzes artificiais do lar onde estou desterrada.

Mas eu, neste dia em que me visitaste, sorri. Sabes? Sorri tanto que o meu rosto se modificou como se fosse maleável de novo. Não te conheci, no momento, ou não te conheci da forma que querias que te conhecesse. Sei que nasceste de mim e que, durante muitos anos foste parte de mim como eu fui parte de ti e disso, sabes, já não me lembro. Eu já não sou o sorriso que te viu nascer ou os braços que te seguraram e acariciaram. Eu já não sou o colo que te amparou durante anos. Eu sou, filha, eu sei que sou, mas já não te o mostro porque já não me lembro. A doença, esta Alzheimer, secou-me as memórias e transformou-me as ideias num deserto inócuo. Mas eu ainda sinto e o meu sorriso é a prova de que sinto. O meu sorriso, que hoje te mostrei e que desejei, no íntimo, que tivesses visto, é o sorriso que te mostra que eu ainda sou e ainda sobrevivo atrás do olhar vazio, atrás das rugas que o tempo desenhou.

Filha, ainda bem que vieste visitar-me. Eu queria dizer-te isto. Eu queria tanto que soubesses que sou os anos que passaram e que sou as memórias que tens. Estou parada num momento que já não é o nosso, num quarto de hospital ou casa de repouso, como me dizem todos os dias. E todos os dias tenho memórias novas que esqueço. Dizes ao meu redor que não te recordo. Dizes ao meu redor que o meu olhar é vazio e que não te lembro. Talvez tenhas razão. Talvez eu já não seja mais do que as memórias tuas e de todos sobre mim.

Os meus cabelos perderam o pigmento como a vida que se evadiu de mim e me deixou aprisionada num corpo seco. Filha, dizes-me que tens saudades minhas e do meu sorriso. Dizes-me que os meus netos choram por mim e que o meu silêncio é o anoitecer. Filha, eu sorri, sabes? Sorri tanto, de todas as vezes que me visitaste. Em todas as memórias, a partir do momento em que te dei vida. Quando te peguei ao colo pela primeira vez e o meu sorriso e o teu sorriso foram só um, conjunto… Uma só partilha, entre mãe e filha, entre o silêncio e os choros, entre os sorrisos que me mostraste. Entre a tua vida e o teu olhar nos meus olhos que se transformou só num.

Mãe, dizes aos outros, é a minha mãe. Ela já não sorri como sorria para mim. O mal, a doença tirou-a de mim. Levou-lhe a alma, deixando-lhe o corpo aqui. Ainda a vejo como a minha mãe, mas já não a sinto em vida ao meu lado.

Filha, nesta pele envelhecida que só sustenta os ossos e tem os músculos já sem força, eu vejo-te e sentir-te-ei sempre como se fosses a minha menina. Adoro a forma como tens o cabelo solto hoje, adoro a tua pele queimada pelo Sol e invejo que a minha não seja assim ainda. Mas agora já não te posso dizer o que sinto. Este corpo envelhecido e esta memória que já não existe em mim, esta doença que me tentou limpar as memórias não te apagaram. Vives em mim como eu viverei em ti anos e anos sem fim.

Filha, eu sorri…sorri tanto, durante anos fui o teu sorriso e tu foste o meu. Hoje, deixei-te o meu sorriso para que ele não deixe de ser e viva em ti, com a dignidade que sempre te ensinei. E hoje, tenho a certeza que te ensinei a dignidade e tenho a certeza que me viste sorrir. Eu sorri, sabes?