7 Novembro 2015      01:17

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PESSOAS… E A SOMBRA DE UM FRANGIPANI

Caminho no meio da rua. Já passa do meio-dia. É tarde e não há carros a circularem nesta zona pedestre. Continuo a caminhar no meio da rua e a olhar as pessoas que se cruzam comigo. Não vejo o sol pois o céu está nublado. Vejo as pessoas que se cruzam comigo no lado direito e no lado esquerdo do passeio. Uns olham-me com olhar vazio e desconfiado, transparecendo que passear nesta rua é coisa que fazem todos os dias. Uns vão mais apressados para chegar ao barco no Cais do Sodré, para passarem o rio, para irem para o outro lado onde vão dormir e voltam no dia seguinte para fazer o mesmo ritual. Outros caminham simplesmente, caras menos cinzentas que tiram fotografias aos altos edifícios do tempo do Marquês de Pombal, erguidos sobre os destroços, sob as lágrimas e debaixo do pânico do 1º de novembro de 1755.

Caminho no meio de uma imensidão de gente que não conheço. Os rostos mais sisudos, aqueles mais quadrados, mais ovais, as peles envelhecidas pelo tempo, as crianças que caminham de mão dada com as mães, os bebés que choram nos carrinhos e os miúdos que fazem birra por causa daquele doce que os pais não lhe compraram na loja. Caminho no meio de tantas pessoas e parece-me que as vejo como se fosse um espelho. O ser humano é demasiado interessante, complexo e tão ardilosamente arquitetado para que o possamos catalogar ou definir as suas partes componentes. Elas misturam-se no emaranhado de emoções e tornam as partes simples, num complexo mutável a que damos o nome de pessoa.

As pessoas olham-me como as olho, olhar de soslaio, um olhar mais fixo, talvez por acreditar que já nos cruzámos e que a cara me é familiar. Mas, o caminhar na rua, num dia à tarde, já depois do almoço, quando a minha sombra toma já outro caminho, torna-me anónimo e solitário. Por muito que caminhe acompanhado, não há mais pessoas que se preocuparão em pensar ou imaginar qual será o meu destino. Caminho no meio da multidão que descrevi e sinto-me em casa, como se a minha casa pudesse ser uma rua de calçada portuguesa e um conjunto de rostos desconhecidos. Permito-me admirar as pessoas que se cruzam comigo no meio de uma rua movimentada e penso nas comparações possíveis entre as pessoas e algo mais que se possa assemelhar a elas. Penso no livro de Patrick Suskind – O Perfume e n’ A varanda do frangipani de Mia Couto e, centrado nas ideias, imagino. Ah, fossem as pessoas perfumes e fragrâncias, cada uma com seus cheiros, e fossem as árvores pessoas e as flores os rostos iluminados, na sua singularidade e diferença.

Desenho o retrato na minha cabeça da vida de pessoas e rostos como se construísse um catálogo e procurasse decifrar e colocar preciosamente todas as diferenças em pequenos frascos e os etiquetasse como se fossem óleos essenciais. Há pessoas que, sendo um pequeno frasco de perfume seriam óleo de jasmim, num aroma difícil de confundir. Já outras seriam lavanda, carregando os campos púrpura e aquelas que fossem as rosas seriam também pessoas de características particulares, de diferentes cores, assim como a flor da laranjeira cresceria na sua essência. Outras pessoas seriam como a flor do frangipani, num cheiro tão suave como a flor que lhe deu origem, um cheiro que se poderia mesclar com todos os outros pela sua forma de se entrosar na multiplicidade de aromas e não se evidenciar na multidão. Se não caminhasse na rua entre prédios de cimento, com o cheiro das castanhas a assar, preferiria estar sentado na varanda de Mia Couto. Pudesse eu imaginar o detalhe de uma flor de frangipani, entre o amarelo do centro e o branco que a caracteriza, no seu cheiro que se emaranha e, por ser tão suave, se confunde.

Caminho ainda. Esta imagem transporta-me à terra onde regresso nos sonhos, à ilha dos deuses, a Bali e às montanhas de Ubud, onde as folhas do frangipani se dispõem e se moldam nos tons dos verdes, nos seus cheiros característicos. Não estou em Lisboa nem em Ubud mas é como se estivesse, é como se o meu eu que é corpo, e carne e pele, fosse a essência de um perfume de frangipani, protegido dentro do vidro que é a minha epiderme. Estivesse eu sentado na sombra de uma árvore em vez de caminhar na rua movimentada e sem me cruzar com os olhares e com os rostos que transformo, nos cheiros que reconheço e procuro identificar e já não são os da cidade mas sim os que quero sentir. Aquilo que sentimos no dia passa a ser parte de nós e, enquanto continuo a caminhar no meio de pessoas e de aromas, os meus olhos já não veem as ruas, nem as pessoas. São só duas cores, o verde e o branco em harmonia com a minha paz interior.

Caminho. Paro. Caminho. Paro. O meu corpo continua a caminhar no meio da rua e a minha alma adormece à sombra de um frangipani. O aroma de uma flor que se ajeita atrás da orelha segreda-me que as pessoas são como os olhos e todas são fragrâncias que navegam no ar, aquelas que se escondem no meio sem que as vejamos, as mesmas que sempre nos acompanham.