30 Maio 2015      09:35

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O AMANHECER

O dia amanhece antes que o murmúrio do nosso olhar assente no horizonte. Há um Sol que surge sempre a Oriente e desaparece nos antípodas. Diria que somos conhecidos, que já nos vimos em muitos lugares do mundo, em tantas das minhas viagens e aventuras pelo globo terrestre fora. Já vi o amanhecer tantas vezes… tantas vezes dentro de aviões, no meio do ar, voando por sítios que nunca conheci nem conhecerei em breve… já o conheci e percebi que o amanhecer dentro de um avião é diferente de todos os outros amanheceres no mar, na terra, no meio do nada ou no meio de uma cidade, espreitando entre os edifícios que teimam em arranhar o céu. Não há, pois, um lugar fixo para marcar o lugar em que estamos nem aquele em que ficamos para o contemplar em toda a sua beleza. Sempre que nos vimos, eu e o amanhecer, ia ao seu encontro, no horizonte, num Oriente distante onde nunca o esperei encontrar ou alcançar. O nascer do Sol é como o arco-íris… Por mais que tentemos, nunca o poderemos alcançar.

É este o Sol que nasce quando a noite quer ir dormir, é este o Sol que acorda com o romper da manhã e transforma a noite em memória. Em anos e anos de noites e dias, de dias e noites, aprendi que cada dia, cada nascer do Sol, cada amanhecer é um novo capítulo na minha estória e na estória de um Universo com milhões de anos, grande parte da qual não aparece em manuais, não é contada de avós a netos nem figura nos registos. Gosto que a minha história e as estórias que conto se confundam com o amanhecer. Este de hoje, que vi porque não conseguia dormir além do fim da noite, reaviva-me na memória várias outras noites, muitas de insónias, de sonhos e pesadelos em que acompanhei a noite na passagem para o dia.

 Acordar é despertar de uma introspeção profunda, de uma apatia quieta que é o sono e transformar os sonhos em dia e em movimentos reais, recordando apenas fragmentos desses sonhos. Em África, sonhar é como amanhecer dentro de um avião a viajar para Oriente. É como se estivéssemos sentados na varanda de uma pequena casa, situada numa igualmente pequena cidade, em que cada uma das ruas tem nome de árvore e disfarça a sua presença no meio do verde e de todas as árvores que dão nome a ruas. Em África, na que conheci, austral e semitropical, o amanhecer surgia num horizonte tranquilo, onde a savana se confundia com os imensos campos de cana-de-açúcar verdejantes, nessa África que me ensinou a apreciar o mesmo nascer do Sol, vendo-o na imensidão de um vazio de cimento. Entre rios e vales, a calma da savana que começava ainda nas casas e se estendia por um longo território tornava-se um gigante deitado. No barulho das cigarras, a melodia ardente de um dia ecoava como se fosse uma torre elétrica onde se prende a corrente. A par do barulho das cigarras, nascia o dia que já o tinha sido no passado e que o seria dia no futuro depois do interregno chamado noite.

Como a bordo de um avião intercontinental, o tempo e a memória percorrem altitudes e distâncias, pensamentos e ideias, projetos e sonhos, alegrias e desilusões, tudo parece ser uma repetição de algo que já foi e recupera imagens do tempo passado. A ideia do amanhecer, além daqueles que vi no sul do mundo, leva-me ao momento em que, frente a uma janela tão grande como toda a parede, num andar acima do décimo, vi a noite separar-se do dia em Pequim, envolvida numa poeira em tons de amarelo acastanhados, feroz como turbilhões de fumo a saírem das chaminés das fábricas na capital chinesa, misturados com as tempestades de areia vindas do deserto da Mongólia, numa fúria que tudo fazia parar a cada momento. Observava ansiosamente os raios que deveriam surgir mas não os vi, mirei apenas uma imagem distorcida daquilo que me parecia ser o Sol mas podia ou não ser. Desviei um olhar algo frustrado da janela e do horizonte de prédios em construção e concentrei-me então, em baixo, num qualquer jardim cujo nome não percebia. Era um jardim daqueles que, ainda antes de o Sol espreitar, os homens e as mulheres já se mexem em gestos lentos e concentrados, numa arte quase pensada ao milímetro.

No resto da cidade, os rostos movimentavam-se apressadamente, quase todos de expressão facial vazia e distante. Ainda sob a luz da iluminação da noite, acompanhados no caminhar pelo burburinho da mudança que ferozmente substituía os hutongs – pequenas casas tradicionais – por altos prédios envidraçados, contruídos numa pressa que obrigava a que os trabalhadores, em três turnos diários, não distinguissem o nascer do por do Sol. Sei, hoje, que Pequim já não é cidade que conheci naquele dia, naquela janela a partilhar a ideia de um amanhecer ofuscado pela poluição. Poucos anos depois, os Jogos Olímpicos transformaram a arquitetura, o espaço e os vazios que o Sol sempre vira ao despertar. Penso que nunca mais verei as pequenas bicicletas paradas a esperar que a areia se acomode no chão e que o vento feroz se acalme no horizonte, perdidas no meio das tempestades de areia dos desertos da Mongólia.

Não vi o amanhecer como gostaria mas, sentado na muralha de muitos quilómetros, no percurso completo que nunca farei, imaginei-o, belo como seria. Talvez em imaginação nos tenhamos visto, mas desse encontro só terei a memória, nunca as fotografias que guardo do momento em que percorri os metros de Tiananmen e olhei uma cidade proibida, vazia, ladeada de jardins, uma cidade dentro da cidade onde hoje entram todos aqueles cujos antepassados sempre sonharam cruzar os portões. Nela permanecem os despojos da memória de um império terminado. Entre o palácio de inverno, sentado em barcos imóveis feitos de mármore e o templo do Sol, a ecoar os sons da minha voz, circular, redonda como templo e luminoso como a estrela que lhe dá o nome. Em Pequim, apesar de o ver, no meu rosto impressionado, os raios marcavam a assinatura de um visto de estada especial. Lembro o cheiro das ruas, da fúria matinal contrapondo-se ao tai-chi, calmo e concentrado de uma China também ela no processo de uma mudança voraz em que esta é a comparação que me ocorre. Deambulei no frio da cidade, nos pequenos restaurantes, no ruído e cheiro, das sopas de massa de arroz fumegantes, dos primeiros patos a saírem, enrolados em finas tiras de pepino e numa massa fina de crepe, ensopados em molho de soja, para o bulir fervoroso de dezenas de trabalhadores à mesa, servido em molho, acompanhado num caldo onde o pato foi cozido. Inundo-me do aroma inebriante da comida e olho as ementas sem que possa sequer entender o que lá se diz. Esqueço tudo o resto. Os carateres da ementa olham-me sem que os perceba, mas rodeados de imagens. Neste preciso momento percebo inteiramente a frase tantas vezes dita de que uma imagem vale mais do que mil palavras e aponto timidamente para a fotografia de uma taça de massa de arroz e de Pato à Pequim.

 Percorri as ruas durante todo o dia, até ao cair da noite e perdi-me nos meus pensamentos como tantas vezes já me aconteceu. A hora da partida aproximou-se e, horas depois, no avião, em noite cerrada, sei que o dia amanheceu e que o amanheci. De costas para o Oriente, mas sentado a seu lado, adormeço e relembro uma ideia. O nascer do Sol é como o arco-íris… Por mais que tentemos, nunca o poderemos alcançar.