22 Agosto 2015      17:01

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MANTA DE RETALHOS

No primeiro dia do mês de agosto, a família reunia-se toda à beira da arramada e a matriarca da casa aparecia da porta mais baixa, fechada a trinco e a cadeado. Vestida de lenço negro na cabeça, avental cinzento e a cara enrugada pelos anos, trazia nas mãos uma manta de retalhos. Uma manta tão bem feita, produzida durante os meses frios do inverno, aquecida no calor dos primeiros dias de julho e arrefecida e lavada pelo vento no fim de setembro, princípios de outubro. Nesses dias, o vento trazia a chuva, levava o pó e sentava-se no poial com as folhas velhas dos sobreiros e das azinheiras, castanhas, fazendo companhia ao monte ermita.

A matriarca segurava uma manta de retalhos tão pesada como todas as peças de roupa e tecido que lhe deram origem. Sustida com os dedos ainda firmes, mas deformados pelas artroses, moldados assim pela força de segurar a foice nas mãos, cortando feixes e molhos de trigo, aveia e centeio, pelas picadas do restolho. Tortos pela força empreendida ao cavar as batatas e as apanhar como aos tremoços e aos grãos-de-bico na manhã de nevoeiro, em todos os dia de São João, de todos os anos. A mulher segurava a manta de retalhos que havia de cobrir a albarda do burro, desse dia em diante. As mãos, cansadas mas fortes, souberam ainda ao longo dos anos o que era apanhar as azeitonas, amassar o pão e, nos gestos gentis de quem cria sempre alguma coisa nova, coser, passo a passo, as calças antigas, as camisas que o patriarca já não usava e os pedaços de tecido, dando-lhe forma de manta. Como na lei de Lavoisier, todos se transformaram. Agora são uma manta de retalhos nas mãos de uma matriarca, pronta a servir de aconchego ao companheiro de trabalho e viagem do homem.

Naquele dia, era manhã cedo no dia um de agosto e o nevoeiro cobria ainda todos os montes como se o Sol quisesse aparecer. O homem, sentado no poial, camisa de fazenda preta e calças de sarja, comia um pedaço de pão que tinha sido cozido no forno em frente da casa. Tinha sido cozido há oito dias, amassado, tendido e benzido pelas mãos cansadas da mulher que segurava a manta de retalhos, pedaços de tecido e fragmentos de memórias.

O homem cortava os pedaços de pão com um canivete cuja lâmina quase já não existia, de tão gasta por cortar o pão, as madeiras, a cortiça e as cordas que entrelaçavam as canas onde o feijão e as tomateiras se penduravam. Estes últimos enchiam as hortas, desenhadas em socalcos da umbria criando a sua humilde versão de jardins suspensos da Babilónia. O homem dedicava-lhe metade do seu dia, de todos os seus dias.

Determinado a seguirem viagem antes de o Sol raiar, o patriarca cortava os últimos pedaços de pão avermelhado pelo colorau do chouriço que servia de conduto e levantava-se, sacudindo as migalhas que teimosamente ficaram ainda nas calças. As restantes migalhas, no chão, começavam já a ser recolhidas pelas formigas que em todo o lado faziam a sua casa e abriam entradas no cimento do poial.

O homem levantou-se e, agachando-se para entrar na arramada, levantou o burro da palha quente da noite e pôs-lhe a albarda, de jeito a não o magoar. O animal era feito de uma personalidade forte e, contrariando a aceção negativa que o seu nome adquiriu, faria só aquilo que a sua vontade ditasse. O homem sabia disto e cuidadosamente segredou-lhe que hoje teria uma manta de retalhos nova às suas costas, além da albarda, claro está. Saíram os dois da arramada e, cá fora, uma ração de aveia esperava-o para ganhar forças e encher o estômago para a viagem.

Aproximando-se, com ar preocupado, a matriarca lembrou o homem da tarefa que faltava fazer antes de sair. Apontou para o telhado sem pronunciar uma única palavra e o patriarca olhou-a com o mesmo ar e afastou-se para ir buscar uma telha. A telha era de barro cozido, daquelas antigas de meio cano. Virou-a ao contrário e, enchendo-a do sal que a mulher entretanto lhe entregou, ajeitou-a em cima do telhado. Durante o mês de agosto, as canículas, ou a arremeda do tempo, dir-lhe-iam os meses em que choveria e quando estaria mais calor. Não sei se é verdade e se funciona mas, até hoje, sempre vi o mês de agosto como um mês irregular no tempo…ora chove ora está muito calor e as manhãs, essas são sempre nubladas nos meses que representam o inverno.

O casal sabia o que fazia, como sabia bem que no gesto simbólico da manta de retalhos começava o planeamento de todo o ano no primeiro dia do mês de agosto. Iam todos ao povo (à aldeia que hoje é a sede de freguesia). Levavam um cântaro vazio e um cheio. Quando voltassem, um viria cheio e o outro vazio. Levavam medronho e traziam azeite. Nos alforges ajeitados para dividir o peso, o pão, os chouriços e metade da horta para levar aos filhos que já moravam no povo. Rematados os últimos pormenores, a mulher estava já sem o avental e com roupa de domingo. Fechou a porta a trinco e a cadeado, deu milho às galinhas e começaram o caminho pelos carreiros dos montes, para irem ao mercado no povo.

Iam estrear da manta de retalhos que havia de ir à Festa de Santa Susana, que havia de servir para se sentarem na desfolhada do milho e ajudaria a aquecer na viagem até aos banhos do Alferce, lá para os lados de Monchique. Os anos passam, o reumático não perdoa e os banhos ajudam a curar as dores e os males da tristeza de estar isolado.

Para tudo, lá iam os quatro, lado a lado, o burro ao meio coberto com a manta de retalhos, a mulher e o homem, um em cada lado e, a abanar o rabo como gesto de felicidade e lealdade, o cão que os guardava.