28 Novembro 2015      10:47

Está aqui

LIFAU

Hoje é mais um dia no calendário do mundo e naquele das nossas vidas. Hoje é mais um dia em que o Sol nasce a oriente e ilumina a terra, transforma os campos escuros, as altas montanhas, que parecem tenebrosas, em subtis cores que deambulam o amarelo, o castanho e o verde, conforme o dia vai progredindo. Hoje é mais um dia que nasce em Díli, nessa cidade deitada na baía onde me sento e admiro as cores do mar, me intrigo com o recorte da cidade, desenho as montanhas sobranceiras que observam o que acontece no mar e abraçam a ilha de Ataúro, da mesma forma que o Cristo-Rei abraça a cidade que olha. Vista ao longe, a cidade de Díli ainda é verde e deixa-se adormecer nos sucessivos pores-do-sol como adormeci por cá nos últimos três anos e meio. Díli tem o encanto de milhares de épocas das chuvas e tem o peso de milhares de dias de Sol abrasador. Ano após ano, as épocas sucedem-se e replicam-se nas adivinhações dos lian nain (sábios, detentores da palavra).

Num desses dias, desse ano, há meio milénio, chegaram os missionários, os portugueses, a uma pequena povoação que vivia no, hoje, enclave de Oe-cusse / Ambeno. Na altura, era uma ilha dividida em reinos. Chamava-se Lifau essa povoação onde começou a interação entre duas culturas, a timorense e a portuguesa. Tão diferentes entre si que se mesclaram e se tornaram tão próximas em alguns aspetos e tão diferentes em outros. Tudo aquilo que foi, que era há anos atrás, a vida que conheceu nos últimos anos, caminha agora com as mudanças que trazem o desenvolvimento e os dias. Hoje, por cá, comemora-se esse dia que aconteceu há muitos anos.

Este Lifau não será o mesmo Lifau que já foi. Este Timor não é o Timor que já foi. Mas, nenhum de nós é aquilo que já foi. Tanta história que poderíamos contar de nós, das nossas interações, dos nossos momentos felizes e tristes, dos nossos erros e das nossas ambições. Assim é Timor, uma longa história que se pode, a cada dia, todos os dias, contar. Contá-la-emos aos nossos filhos e aos nossos netos, contá-la-emos àqueles que a seguir a nós vierem e não a conhecerem ainda. Esta é uma história de amigos, uma parábola de irmãos, como gémeos heterozigóticos, uma história de amarguras e felicidades. Nasceu, como não podia ser de outra maneira, de uma lenda. O seu mito fundador transformou-se de crocodilo em ilha, como se transformaram os rostos e as vidas dos timorenses desde há milhares de anos. Assim vejo e descrevo Timor. Assim é este Timor que se construiu em identidade tão única e tão próxima aos seus vizinhos e aos portugueses que cá chegaram. Assim são as montanhas, as árvores de sândalo que trouxeram os malaios, os chineses, os portugueses, os missionários, até cá. Timor são as águas pintadas num azul de várias cores, entre o verde e o azul escuro. Timor são as cores tecidas nos tais que se iluminam nas danças, nos tebedai. Timor são os lagartos tokes nas suas cores sarapintadas, nos seus sons tão característicos e as tekis nas paredes, paradas. São anos e anos de história, de gerações e gerações, das famílias, refletida nos rostos, na masca e nos sorrisos dos timorenses, especialmente das crianças, curiosas e irreverentes.

Timor passou a ser, desde há quinhentos anos, chão dos missionários e dos navegadores que, na imensidão trouxeram novos hábitos, novas palavras à língua, trouxeram novos credos, a religião católica que se mesclou com o animismo, com os espíritos e com a natureza. Timor passou a ter o sabor de uma gastronomia que se adaptou, entre o que era e o que de novo chegou. É a caldeirada de cabrito, são os sonhos e as farófias. Timor é assim. Lifau assim é. O marco inicial de uma interação repleta do que é bom e daquilo que é mau. Os irmãos também se zangam e também se amam. O irmão de longe e o irmão de perto continuarão a sê-lo, debaixo do olhar das montanhas e nos caminhos do desenvolvimento.

Hoje é mais um dia igual a tantos outros dias. Hoje é o dia em que se gritou a independência há quarenta anos. São quarenta os anos da independência de Timor, da construção de etapas, de uma etapa de sonhos que foram idealizados e foram interrompidos. As montanhas protegem os seus filhos, escondem-nos e ajudam-nos a crescer. Ou aquelas montanhas imponentes de Oe-cusse, que protegem a memória e se afirmam na identidade, ou os campos de arroz de Baucau, o alto do Ramelau, o café de Ermera, a beleza de Lospalos, o enigmático Matebian, ou ao lado de um Mundo Perdido naquela que já foi a Vila Viçosa de Venilale e o lado do Sul, a costa que é o tasi mane. Todas as montanhas, todos os campos souberam sempre guardar os seus filhos, proteger a sua memória. São os espíritos, as almas que partiram, essas dos timorenses que acordam o dia e que o adormecem. São eles que protegem as árvores e os campos, desenham as montanhas e perduram na brisa dos fins de tarde e das manhãs suaves. São os espíritos dos antepassados que nos lembram, dia após dia, que Timor é assim, que as águas da chuva e as ribeiras são a memória, que os sinos das igrejas são parte da identidade, que uma língua pode conviver com todas as outras e é parte da memória, da luta e da resistência, corporizada pelos filhos desta terra de Timor.

Hoje, olhamos para Lifau como se olhássemos para todo o país. É assim. Um ponto no mundo, um marco na história de um povo que se fez povo na sua diversidade e que se aproximou em identidade de outros irmãos em outros lugares, em outros continentes. Lifau será sempre Lifau, como Timor sempre será Timor, o Leste, esse que é independente, diverso e uno, sem que os ventos o separem. Que o dia de hoje seja mais um pilar na construção do que poderá ser Lifau e do futuro que os filhos da terra ambicionarem para ter para e por si.