14 Novembro 2015      11:25

Está aqui

A HORA DA CEIA

Nos meses frios, em fins de novembro, a família deve juntar-se à hora da ceia. Deve ser um ritual que se cumpra religiosamente à mesma hora, todos os dias. O pai, vindo do trabalho, a muitos quilómetros de distância, do outro lado da cidade grande, vindo de um dia cansativo como todos os outros em que a madrugada desperta o ser e não adormece a necessidade de ir trabalhar, dentro de nós. O pai atravessa a cidade numa carruagem de metro e, depois, no comboio suburbano que parece nunca mais chegar e que vai atulhado de gente, todos com a mesma expressão facial de quem conhece a palavra “rotina” em todas as suas formas e que sabe que o caminho se repete, inverso, no dia seguinte, e assim sucessivamente.

O pai está claramente cansado. A sua pasta de anos, em couro, já gasta pelo passar dos tempos, acompanha-o, como sempre o acompanhou nos últimos dias, meses e anos. O sobretudo do pai, também esquecido pelo passar dos anos, aquece-o. Debaixo dele, o fato, uniforme do trabalho de secretaria que faz há mais de vinte anos e do qual a única fruição que tem se reduz ao salário no final do mês. Na outra mão, um guarda-chuva preto para enfrentar e proteger das gotas de chuva que descem dos céus nesses dias frios. O pai continua sentado na carruagem do metro, cabisbaixo, pensando no caminho, nas idas e nas voltas da vida, nos pagamentos que tem de fazer e no débito e no crédito.

A mãe chegou a casa mais cedo, a um pequeno apartamento nos subúrbios da capital. Uma casa com três quartos, num prédio construído muitos anos antes, antes mesmo de qualquer um dos dois se ter conhecido. A mãe é professora numa escola próxima. Professora de ciências e matemática, sempre se guiou pelos números e pela consistência das ciências. Pensamentos abstratos sempre os deixou ao cargo do pai, homem sonhador que acabou por sonhar só nos pequenos textos e nos poemas que escrevia quando era mais jovem e que lhe traziam luz aos dias cinzentos. Hoje, pouco ou nada escreve. Ao invés, olha a televisão, vibra com os jogos do Sporting e gosta de ver séries sobre vida selvagem, imaginando quiçá adormecer nos largos campos da savana africana ou nas florestas tropicais da Ásia, navegando nos oceanos do mundo. A mãe chega sempre a casa mais cedo do que o pai. Caminha da escola até casa, percorre diariamente uma distância que, traduzida em minutos, diríamos ser à volta de vinte, dependendo do passo. Hoje, senta-se na sua secretária e corrige os testes de todas as suas turmas. Um a um, irrita-se com as respostas e, quase automaticamente, distribui certos e errados marcando depois numa agenda comprada em setembro, as cotações atribuídas a cada resposta. É a mãe quem prepara a ceia todos os dias e é ela quem distribui as regras e as funções da casa. Sonha, não com a savana distante, como o pai, mas com a casa dos seus pais na Beira Baixa e nos fins-de-semana em que a sua vida muda de cor. Os tons de cinzento passam a ser verdes e dourados, floridos e aromatizados pelas montanhas em redor da velha casa de xisto.

O filho, aluno de arquitetura numa das faculdades na capital, chega mais tarde que todos. Fica-se pela universidade, envolto em projetos e trabalhos e na namorada que acompanha desde os tempos do ciclo. Hoje o filho não janta em casa. No meio do projeto e do trabalho, dirige-se a uma cadeia de restaurantes de comida rápida e come alguma coisa. Entre duas palavras trocadas com os colegas, consome batatas fritas, molhos e hambúrgueres, e fica com a sensação de ter absorvido a quantidade de comida necessária para que o estômago não reclame durante a noite.

A filha, aluna do ensino secundário, em fase adolescente da autoafirmação e, no meio das discussões com a mãe, professora na mesma escola onde estuda, o que não lhe agrada, hoje combinou encontro com as amigas no centro comercial mais próximo para assistirem à estreia do último filme que toda a gente da sua idade quer ver e, claro, talvez, quem sabe, encontrar os rapazes da escola que também se passeiam no mesmo centro comercial esperando eles também, talvez, quem sabe, encontrar as raparigas que os esperam encontrar. A filha não janta em casa.

A mãe continua a sua correção de testes, repetida várias vezes ao ano, como se repetem as reuniões e a preparação de aulas. Hoje, a mãe não tem fome e, como anda de dieta, come só uma sopa sem batata, no meio de mais uma turma de testes. Sabe que o pai chegará mais tarde e há o resto do jantar de ontem no frigorífico.

Quando o pai chega, a mãe continua a correção dos testes, o filho ainda não chegou e a filha chegará só por volta das dez horas. Depois de trocarem as parcas palavras de rotina, despe o casaco, pendura o guarda-chuva, põe a pasta, já gasta pelo tempo, no sítio onde sempre põe e vai lavar o rosto e as mãos, esperando que assim lave também as poucas memórias do dia. Tira a comida do frigorífico, liga o micro-ondas e, depois de aquecida a refeição, senta-se à mesa. Liga a televisão em frente, enche um copo de vinho tinto e, entre as garfadas do bacalhau à brás, imagina-se no programa da vida selvagem e no meio do deserto do Calahari, como se a vida, quando regressasse a si, fosse pressentida pelos suricatas atentos e em grupo.

Hoje, na hora da ceia, o pai comia sozinho, como sempre fazia.