6 Dezembro 2015      18:07

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HOJE ESCREVO PARA ELES

Lá em casa somos, quase sempre, quatro. Para uma casa parece um número perfeito, equilibrado, mas a verdade é que o mais difícil de equilibrar é mesmo a casa e o número de que ela é feita. – Aposto que nunca pensou acerca de casa, acerca do número de pessoas com que todos os dias partilha o espaço. Não digo pensar numa comum linha condutiva do dia-a-dia natural; digo pensar como se pensa em alguém que é muito mais do que a imagem que nos deixa quando chega a noite.

O problema dos dias se repetirem é este: é complicado olhar para além das faces daqueles a quem as faces já conhecemos, de quem a voz já decorámos. Principalmente porque pouco essas faces mudam de dia para dia e quase nada a voz nos diz mais do que tem por hábito dizer. Não é, no entanto, na conversa abreviada do meio dia, numa algazarra o mais organizada o possível que vamos conseguir perceber aquela preocupação que corrói ou aquele medo que não se verbaliza por medo do medo. – No final do dia é apenas isto que importa: o que percebemos quando não estamos presentes, no mesmo espaço físico que essa voz. No final do dia é assim que sabemos que dividimos a casa com quatro pessoas e que essas quatro pessoas são mais do que indivíduos que fortuitamente nos calharam na vida: quando a voz é mais do que voz.

Lá em casa não me lembro de ter existido um dia em que fôssemos mais do que quatro. Nos dias em que um de nós não deixava o leito por dor em demasia (a vida faz destas surpresas: um dia descobrimos que somos mais do que pele e ossos, desconhecemos de que mais nos fizeram e deixamos doer), por uma constipação mal curada ou por a perda de mais uma parcela do que fomos lembro-me apenas de existirem seis olhos atentos e seis vozes tão alegres quanto compreensivas. Nos dias em que um de nós achava que o mundo iria terminar, porque caro leitor, o mundo parece terminar tantos dias mais não me recordo de outro corpo, de outros músculos, de outra força desgastada mas insistente que não a daqueles com quem partilho a dificuldade que é ir crescendo aqui e ali, aquando e acidentalmente de tal forma que parece que decresço (E é assim que se faz; é assim que nos fazem: quando nós não nos sabemos fazer, com a força da corrente e do medo do medo.)

Aprendi até agora, no entanto, que decrescer é ir expandido o músculo cardíaco com toda a não literalidade que a expressão possa ter. Aprendi até agora que qualquer distância desmesurada do sangue só nos volta a aproximar, num movimento de elástico que rebate, ainda mais do sangue.

Confesso-me pouco interessada naquilo que possa ter para me dizer acerca do Natal, caro leitor. Sempre me confessei mais aturdida pela data do que propriamente afortunada, envolvida em canções vagas e desejos fúteis de pessoas que mal conhecia e nas quais não acreditava. Sempre fui mais o género de pessoa que fica a um canto da sala e observa, distraída, toda a ação acontecer esperando o momento do sossego. – Mas o sossego não é apenas o silêncio de uma sala é o silêncio das engrenagens do peito e as engrenagens do peito pedem uma manutenção desmesurada. Tanto trabalho!

Tanta vida por viver, vivendo-a nos outros, a ficar extraviada nas meias presenças que me facilitavam o conforto. – E hoje senti-me desconfortável.

Sentada no sofá numa tarde de sábado como outra qualquer, senti-me desconfortável. Senti-me desconfortável pela falta de sossego do peito, senti-me desconfortável principalmente pela distância do sangue a que me apercebi viver. Via e revia vídeos de criança do meu namorado com a sua mãe. Eles olhavam para o ecrã num misto de tristeza e êxito, um saudosismo orgulhoso, e eu olhava para eles embevecida numa emoção de que pouco conhecia.

Sentada no sofá numa tarde de sábado como outra qualquer senti que o Natal, não obstante tudo o que me haviam dito em criança, não obstante todas as considerações que me haviam tomado de assalto enquanto crescia, estava ali, no saudosismo orgulhoso que é chegar ao Natal, mais um ano, com aqueles de quem gostamos.

Mas caro leitor, esta não é uma daquelas ideias que repetimos apenas para ter um desejo a pedir; esta é uma daquelas ideias que nos faz arder em toda a extensão do nosso corpo, quase como que uma boa nova – é o encontrar de algo sumido. É o chegar a casa e reparar, finalmente, que lá em casa somos quatro e que isso tem a sua particular beleza. Que essa particular beleza reside nas veias e nas feridas em que ajudamos a pôr um curativo, nos ossos que nos doem quando a noite é demasiado longa e ainda precisamos de colo – porque precisamos tanta vez de colo mesmo quando já nem o colo podemos pedir! -, quando a vida pede que abandonemos os carinhos de criança, mas os carinhos de criança é tudo o que precisamos e é tudo o que nos espera, quando nada mais nos espera. O Natal é apercebermo-nos de que um dia o Natal vai ser com outras pessoas e sentirmos já esse saudosismo orgulhoso.  É perceber que a casa é equilibrada porque, no fundo, é um lar e que a voz é embargada porque os anos a enchem de histórias para contar e histórias para acarinhar.

Lá em casa somos sempre quatro. Vivemos na corda bamba que é a constante mudança pessoal e o complexo amadurecimento ininterrupto, tal como vive uma casa de dois ou seis, mas no final do dia, quando não sabemos de que mais somos feitos ou quantas dores a vida ainda reserva, somos corpos que se mantêm como rochas uns para os outros e se nada mais me faria escrever acerca do Natal, o meu saudosismo prematuro fá-lo.

Hoje escrevo para eles que, de uma certa distância, me permitiram crescer o suficiente para compreender o que significa o Natal. O Natal significa família, dorida e trabalhosa, mas família.