31 Maio 2015      10:46

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HERMENÊUTICA PARA TOTÓS

Nos meus mais tenros tempos de estudante, fazendo prova de grande ingenuidade, cheguei a perguntar a Urbano Tavares Rodrigues (1) se considerava legítima a minha interpretação do seu romance “Filipa Nesse Dia”. Ao que me respondeu que o texto, uma vez publicado, já não é seu. De facto, significa, parafraseando o autor, que o mais importante é o que nós lá encontramos e o que lá encontramos está lá.

Assim, segundo Urbano Tavares Rodrigues, a intenção do autor pode não corresponder à interpretação do leitor, mas autoriza que o segundo traga à luz do dia, pelo prisma da sua leitura, as obsessões mais profundas e o inconsciente do primeiro.

Porém, existem limites a esse entusiasmo interpretativo, na medida em que, segundo Umberto Eco (2), a propósito de Jack o Estripador, nem todas as interpretações são aceitáveis. Com efeito, explica que seria no mínimo ridículo aceitar de Jack, como fundamentação dos homicídios cometidos, uma falha ao nível da interpretação do Evangelho Segundo São Lucas.

Deste modo, nem todas as leituras são aceitáveis nem razoáveis e surge a questão do estabelecimento de limites entre o que se considera uma interpretação correta e uma interpretação excessiva. Mas antes de mais, convém refletir acerca do sentido da palavra interpretação. A interpretação é a atribuição de sentido a um texto (e aqui, como Carlos Reis (3), acrescentaríamos o adjetivo coerente, para excluir todo e qualquer “empolamento da subjetividade”). Mas continuamos com um problema, a interpretação nunca pode estar isenta da subjetividade de cada um, visto estar ancorada nas nossas ideologias, na nossa cultura, nas nossas experiências e no nosso espírito crítico, assentando no estabelecimento de analogias entre o texto e as nossas vivências e conhecimentos.

Como diz Eco, a diferença entre uma interpretação sensata e uma interpretação forçada, “paranóica”, residiria no facto de, numa palestra, após num mesmo enunciado ter juntado dois termos tão absolutamente distintos como o podem ser “durante” e “crocodilo”, a audiência ficar a pensar nos motivos ocultos que levariam o orador a usar essas duas palavras numa mesma frase, sendo essa ocorrência forçosamente reveladora de algum segredo inefável. Eco dá ainda o exemplo do médico que diagnostica aos seus pacientes uma cirrose por beber gin-cola, whisky-cola e cognac-cola, concluindo que, manifestamente, a cola é a causa inequívoca da doença. Na realidade, esse médico não terá tido em consideração o álcool também ele contido nas três bebidas, pelo que decretou uma relação de causalidade sem analisar as especificidades do refrigerante nem as das bebidas alcoólicas em questão.

Assim, podemos avançar (ou recuar…) que o leitor, faça a leitura que fizer, é soberano, no entanto, se se deixar levar pela febre da hermenêutica, não fazendo prova de “bom senso” no estabelecimento de analogias coerentes e relevantes, arrisca-se a pisar o risco. Do mesmo modo, não podemos negligenciar o facto de que a leitura é parte integrante do processo de construção de sentido, dado que, não só é necessária como imprescindível para que o texto exista (O que seria de um texto sem leitor?), exigindo de nós dois dedos de imaginação e de sensibilidade literária.

 

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(1) Entrevista a Urbano Tavares Rodrigues in Fontinha, Sandra, “La Fonction de l’Espace Alentejano dans l’Oeuvre de Urbano Tavares Rodrigues, Filipa Nesse Dia”, Tese de Licenciatura, Bordeaux, 1999.

(2) Eco, Humberto, Interprétation et Surinterprétation, Collection Formes Sémiotiques, PUF, Paris, 1996.

(3) Reis, Carlos, Técnicas de Análise Textual, Livraria Almedina, 3º Edição revista, Coimbra, 1992.