11 Outubro 2015      00:55

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FALANDO DE LITERATURA ORAL, POPULAR E TRADICIONAL

Quando se fala de Literatura oral, à partida, como o nota Manuel Viegas Guerreiro na obra ”Para uma História da Literatura Popular Portuguesa"1, existe uma contradição porque a Literatura é associada à escrita, já que etimologicamente a palavra Literatura refere-se à escrita, às letras, no sentido estrito do termo, portanto ao carácter do que é escrito.

Sem nos subtrairmos a esse paradoxo poderemos, no entanto, optar pelo termo “tradicional”, mais neutro, remetendo assim para o caráter ancestral da produção literária, evidenciando a sua transmissão. Contudo, deparamo-nos com outro problema, tal como o observa Manuel Viegas Guerreiro: o adjetivo “tradicional” exclui toda a produção recente em detrimento de uma já enraizada.

Deste modo, ainda segundo o referido autor, “popular” parece ser a escolha mais adequada, na medida em que neutraliza os elementos da dicotomia escrita/oralidade, assim como a que se prende com a época de criação do texto. Por outro lado, para resolver a referida questão, João-David Pinto Correia, recorda a existência do termo “oratura”2 e socorre-se do “texto”, igualmente impermeável à dicotomia escrita/oralidade.

No que respeita à Literatura popular, apesar de tudo, mantem-se a forte presença do fantasma da escrita veiculada pelo termo Literatura e, face à preponderância da escrita, Manuel Viegas Guerreiro pergunta-nos onde estão na palavra escrita “o timbre, a inflexão, as pausas, enfim o ritmo, a intensidade da interrogação ou da exclamação, o ímpeto do entusiasmo, os gestos, os movimentos, o intérprete, atuando, as pessoas ouvindo, o local, a hora, o porquê e para quê (…)”3, salientando assim a riqueza fenomenológica da oralidade, e acrescenta:

“Reduzida a escrito a peça literária, que nasceu para ser dita, assemelha-se de algum modo, a um cadáver que não se decompõe”4.

Já imaginaram as letras das músicas dos Cantadores de Portel serem confinadas a livros e cadernos para consulta, despojando-as da sua pujança, do seu sentido, da sua razão de ser? Daí decorre a maior força do texto oral, a sua capacidade de mexer com o auditório aliando a palavra a um conjunto de fatores que lhe são alheios.

Assim, os textos orais são extremamente ricos por serem sujeitos a uma variação dependente do contexto em que surgem, pois obedecem a toda uma série de fatores: meio social, memória, literacia do enunciador, música, etc., por isso, não podem ser considerados produções de segunda categoria. Muito menos se deve pensar que, fixando-os na escrita se resolve o “problema”, pois continua a existir um fosso entre a transcrição de textos orais e a produção escrita.

Concluindo, segundo João David Pinto Correia, esse texto que sofreu influências do meio, que foi completado, pelas versões sucessivas, deturpado e/ou fragmentado, enriquecido pelo contexto social e cultural que o envolve (imprescindível à compreensão e análise da produção oral, na medida em que o mesmo nos dá pistas preciosas sobre o texto em si), é apelidado de etnotexto, contemplando, produções orais, escritas, recentes, tradicionais, coletivas ou individuais, isto é, toda a produção literária criada pelo povo e para o povo.

“Não há gente culta e gente inculta. A cultura é só uma, tudo o que aprendemos ao nascer e ao morrer, de nossa invenção ou alheia, sentados nos bancos da escola ou da vida”5.

 

 

1 Guerreiro, Manuel Viegas, Para a História da literatura Popular Portuguesa, Série literatura, Biblioteca Breve, Lisboa, 1978.

2 Correia, João David Pinto, Para uma Teoria do Texto da Literatura Popular, in Literatura Popular Portuguesa – Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Acarte, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

3 Op. Cit., p.14.

4 Op. Cit., p.15.

5 Op. Cit., p.25