16 Maio 2015      11:56

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ENTRE PARALELOS

A nossa vida, a de todos e de cada um, faz-se entre paralelos. Tudo começa e acaba numa latitude. Toda a nossa existência percorre latitudes, longitudes, paralelos e meridianos. Algumas até desenrolam-se entre trópicos, atravessando a linha do equador uma ou muitas vezes. Cada paralelo, cada ponto longitudinal é diferente do outro. Aliás, cada metro e cada um de nós é diferente. Nunca até hoje vi duas rochas iguais. Nunca até hoje senti que a água passasse duas vezes no mesmo sítio como já os sábios gregos antigos notaram. Nunca até hoje reconheci a brisa no rosto ou o assobio dos pássaros em momentos diferentes. Nunca nas cidades vi ruas iguais, nem prédios ou travessas, nem carros e nem os rostos acinzentados de quem vive nelas. As cidades roubam os sorrisos às pessoas e escurecem o sol dos seus rostos.

Nasci em Almodôvar. Não é cidade, é o campo adormecido e plano que se acorda com o terreno acidentado da Serra do Caldeirão. Nasci nas montanhas, nasci no mesmo sítio onde busco a minha identidade todos os dias. A casa onde nasci é a casa onde vivo e me reencontro. A paisagem que vejo é aquela que me acompanha entre paralelos, quando adormeço e me sinto longe e distante. As árvores que comecei a ver e entender há mais de 30 anos, continuam a existir no tempo. Algumas desapareceram como desapareceram aqueles que conheci ao longo dos anos. A cada ano que passa, o tempo fica mais vazio. As pessoas mudam de lugar, adormecem no barulho sonolento do vento e dos ruídos da natureza. Muitos do que conheci continuam lá sem o estarem. São parte da memória de todos nós como se nunca nos tivessem abandonado. Muitos foram para São Barnabé onde dormem um sono profundo. Penso neles. Penso nos que estão e na distância entre os paralelos da minha vida.

Vivo e voo entre os paralelos 37 N e 9 S. Esse calmo e sereno Alentejo que adormece na planície e se agita nas serras antes de dar lugar ao Algarve e este paralelo tropical que vê o mar e dá lugar às montanhas, na confusão de trânsito da cidade de Díli. O barulho das buzinas, a impaciência dos condutores aliada ao burburinho das motorizadas, na pressa de chegar ao lugar que é o outro, tudo é Díli. Vivo dividido entre dois paralelos. A mim não me interessam as longitudes, nem meridianos, interessam-me as distâncias da emoção, do silêncio. Interessam-me os paralelos conhecidos e desconhecidos, sentados entre si a contemplar-me. Transporto-me entre eles e acredito na possibilidade de me encontrar neles.

No paralelo 37 N crescem as searas de trigo, onde pousam as cegonhas que fazem os ninhos nos altos postes. Elas sabem quando o vento e o tempo as levará para outro lugar. Eu não sei. No paralelo 37 N, observo a longa marcha dos tratores e a mão de quem semeia o campo, as mãos de quem colhe os frutos das espigas douradas. Nele, no terreno acidentado das montanhas que sou, nessas árvores verdejantes, de flores em campânula deitada para baixo, vejo os frutos verdes que se transformam e ficam amarelos e vermelhos e penso nos meses em que todos os que conheço os recolhem e transformam numa água, na água ardente dos meses de Inverno frio. Penso no medronho, penso nas noites frias de Inverno e no calor seco do verão. Gosto de sentir as diferenças e as mudanças nas montanhas que também sou.

No paralelo 37 penso em todos os que já viram as montanhas antes de mim, todos os que escreveram em pedra sobre elas. Penso nos povos do Sudoeste e na sua escrita, na idade que nasceu com o ferro. Recordo-me dos romanos que os seguiram e nos árabes que nos deram o nome e a quase tudo aquilo que na imensidão dos campos se usa e conhece. Recordo-me do furor das ceifas, das noras a rodar alimentando e saciando a sede dos que trabalham a terra. A planície e a serra falam entre si e recordam-se, como eu me recordo delas. Ambas sabem muito mais do que eu sobre mim e sobre todos os que partilharam o seu ar.

Hoje, no paralelo 9, recordo-me nestas imagens, como me recordarei um dia aqui, em frente a este mar calmo, azul, impávido, sereno, pleno de golfinhos e peixes voadores na baía. O barulho deste som da chuva torrencial a bater no zinco para me acordar das memórias. Neste paralelo, lembro-me de quem sou e do que por aqui faço e vivo. Mas serão, um dia, memórias vagas, apagadas de uma terra que guardo comigo. O paralelo não muda, mas eu terei de mudar de paralelo um dia. Vivo numa cidade que não deixa os rostos cinzentos. Tem nela os traços do tempo e do sofrimento, das memórias tristes, mas não deixa os rostos cinzentos. O Inverno não acontece aqui e as mudanças não acontecem também. Vivo entre paralelos. Vivo entre a turbulência das emoções e do que sem se esperar, sempre se espera. Neste turbilhão de emoções, da saudade, do silêncio do interior, lembro a calma do outro lado, a impavidez dos campos ora verdes, ora roxos, ora dourados e desejo estar lá. Sinto as montanhas que me chamam. Mas lá, sinto que este me chama e me diz que os rostos não são cinzentos e as montanhas de cá me querem acordar com as suas águas. Metade sou norte e metade sou sul. Eu, como todos nós, somos paralelos, divididos no interior, mesmo que nunca tenhamos saído do mesmo quadro pintado ou do mesmo ponto geográfico. Todos somos.