29 Agosto 2015      14:58

Está aqui

EN ROUTE...

Seis da manhã. Naquela pequena cidade de França, perto de Marselha, um agregado familiar constituído por cinco pessoas, Alice, Paulo, Pierre, Janine e João. Todos estão já levantados, ainda o sol não espreita atrás das chaminés e dos reatores da zona industrial. Já se vislumbram os seus primeiros raios e há, nesse dia, no ar, um certo pó poluído que se mistura com o nevoeiro, dando-lhe uma cor alaranjada e cinzenta. 
En route… É terça-feira, dia 1 de agosto de 1995 e a família prepara-se para uma longa viagem. Alice, já em roupa casual, acaba de encher as últimas malas com a roupa que será necessária para um mês de estada longe de casa. Na geleira, água, sumos, refrigerantes, comida, enfim… abastecimento para quase dois dias de viagem. É preciso pôr tudo em ordem e arranjar tudo para que nada falhe e que a viagem decorra com a mesma normalidade de todos os anos anteriores. Paulo, depois de verificar os níveis de óleo, de água e de puxar o lustro mais uma vez ao tablier do carro, depois de limpar com cuidado a sua preciosa viatura, começa a abrir a bagageira e a colocar, ardilosamente, as malas que fazem parte do conteúdo da viagem. Tudo estará pronto em menos de meia hora. 
Pierre, Janine e João acordam, lentamente, ao som dos chamamentos da mãe. Nem hoje a preguiça os deixa saltar da cama e abraçar a viagem que os espera. De walkman na mão, auscultadores a tocar uma banda de rock francesa na moda, arrasta-se Pierre até à mesa para tomar o pequeno-almoço. Os outros dois irmãos seguem-no. Mais novos, apesar de constantemente desafiarem a liderança do feudo, continuam a respeitar as ordens do mais velho. Sentam-se os três à mesa, olham ensonados a mãe e recebem as últimas instruções. Balbuciam algo em francês, língua segunda que se confunde com a primeira, mas que não é aquela com que os pais comunicam com eles. Entre si já falam mais francês do que português, como fazem na escola e na brincadeira com os amigos. Com os avós em Portugal, destino da sua viagem, falarão em português, como sempre falaram e, no fundo, não notam qualquer diferença na mudança de registo que os acompanha. 
Tomado o pequeno-almoço, fechada a casa que ficaria sozinha durante um mês, sentados na carrinha e tudo orientado, chega a hora da partida. A chave fica com a vizinha, amiga de longa data e oriunda de Trás-os-Montes, que este ano veio a Portugal em julho. Despedidas feitas, nervosismo mais acentuado e começa a viagem. Destino, pequena aldeia perto de Moura, no distrito de Beja.
Lá, já começaram os preparativos para receber os filhos e os netinhos que já não são vistos há um ano. A tradição repete-se. Como as festas de verão da aldeia que não se realizariam da mesma forma sem todos os que são, mas não estão, a aldeia enche-se e as casas vazias que são daqueles que vêm, mas não ficam, enchem-se de cor. Ti Maria já limpou a casa com a comadre Gertrudes e tudo parece estar pronto. A casa é de Alice e Paulo. Uma casa simples mas construída pensando nos dias da reforma, onde pensam poder descansar, tendo no quintal aquilo que em França não têm. Anseiam voltar em breve e fazer dos dias solarengos de Moura um refresco natural, transformar as tardes de calma na hora da folga depois de uma longa refeição alentejana, regada a vinho de Pias e melão pele de sapo colhido na manhã desse dia. 
Já en route… Atravessada a França, nos Pirinéus, na fronteira de Andaia descansam num dos parques onde se cruzam com tantos outros que fazem o mesmo percurso. No caminho, são acompanhados pelos primos e vizinhos. São cumprimentados pelos conhecidos e pelos desconhecidos que tomarão rumo a Vilar Formoso. Alice, Paulo, Pierre, Janine e João seguem rumo a Badajoz. Debaixo de um calor intenso, que só as paragens recorrentes e a água conseguem amainar, passam por Barcelona, Madrid, Mérida e chegam a Badajoz. A casa, essa verdadeira casa onde o coração sente que está e à noite, nos sonhos, deixa Marselha e dorme lá, é em Moura e nunca pareceu tão perto. Nessa noite dormem em Elvas. Já falta pouco, mas também já é tarde e os olhos acusam o cansaço. Alice não conduz e Paulo não arrisca continuar pela noite dentro até porque só no dia seguinte os avós, os tios, e os primos os aguardam. 
As últimas horas de viagem são feitas com ansiedade. Pierre já ouviu a cassete de rock francês vezes sem conta. No rádio do carro já se ouve o som de uma rádio portuguesa e as músicas dedicadas ao regresso dos filhos que tanto se repetem no mês de agosto. Parece que já estamos em casa, desabafa Alice. Paulo acena com o olhar e pensa no presunto, nas paiolas, na carne da manteiga e no vinho de Pias. Janine e João pensam nos primos e nas brincadeiras. Pierre pensa na menina de olhos azuis e cabelos louros que conheceu no ano anterior e chega da Suíça daí a dois dias. Tudo está pensado e enquadrado. Os almoços em casa de todos e todos a almoçar em sua casa, o batizado dos pequenos que esperam os padrinhos convidados no ano passado, as festas da aldeia, onde todos se reveem e matam saudades e, durante um mês, tudo acontece como sempre aconteceu até esse momento. Nem sempre será assim porque há os que envelhecem e os que partem e os que deixam de vir de férias.
O tempo corre com o calor a encurtar os dias longos e, por fim, os últimos dias. Os que mais doem. Os dias do fim do mês, da partida, do caminho inverso que não quer ser percorrido. Os pensamentos mudam. Alice partirá pensando na casa, no coração que fica na casa junto com todas as compras que fez nas feiras de agosto para a compor. Paulo partirá pensando em mais um ano e nos amigos, e nos jogos de sueca e na tasca do Ti Manuel, entre um copo de tinto, um petisco e umas anedotas mais picantes para fazer frente à calma. Pierre cisma na menina de olhos azuis e cabelos loiros que pediu em namoro e ficará mais um ano sem ver o azul do mar nos olhos dela. Janine e João pensam nos primos e nas brincadeiras. Já só falam em português nos últimos dias do mês de agosto. Cumprem o ciclo da viagem, da partida e do regresso.
É um fim de tarde do fim do mês de agosto e a estrada parece mostrar um horizonte sem fim, com as ondas de calor ainda a diluir o alcatrão. As despedidas são dolorosas e as lágrimas não acalmam o calor nem aquecem o frio que invade o pensamento de toda a família encostada à parede caiada de branco. Mais um ano de trabalho à porta, e en route, acenam um adeus, deixam um olhar e um vazio que, por breves dias, foi preenchido nesse mês de agosto.