10 Outubro 2015      10:48

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DOIS DEDOS DE CONVERSA E UM COPO DE TINTO

- É verdade, meu caro amigo, lembro-me como se fosse hoje! As nossas conversas eram feitas de copos de tinto, acompanhadas por leves tiras de presunto e de pão alentejano, com azeitonas. Um bom vinho alentejano aquele que se bebia nos bancos da nossa tasquinha. O meu amigo, lembra-se? Os assuntos, esses, variavam de acordo com os temas da atualidade, as capas dos jornais do dia ou as histórias do passado, no tempo em que nos conhecemos. O meu amigo, lembra-se? – perguntava, enquanto deitava mais um pouco de vinho no copo, deixando-o meio cheio e meio vazio, ao mesmo tempo.

Foi numa dessas conversas que lhe falei daquela ocasião em que tinha estado a partilhar dois dedos de conversa e um copo de tinto com uns amigos, colegas universitários, numa pequena cidade sul-africana. Não estavam os pratinhos com os aperitivos em cima da mesa nem se tratava de uma tasca semelhante a essa onde nos sentávamos, quase que regularmente, a beber um copo de bom tinto e a trocar dois dedos de conversa. Nesse outro lado, sentávamo-nos numa antiga casa de estilo colonial, de seu nome Rosehurst, num dos bairros do centro da cidade. O que tornava especial essa casa era o seu magnífico jardim, bem cuidado, mas, ainda assim, com um ar meio gótico, daqueles que se leem nos romances americanos desse período. A mesa em que nos sentávamos ficava já na parte exterior. Olhava as trepadeiras, o pequeno lago com a estátua no meio, mas cheio de uma água já esverdeada pelo musgo que entretanto lá nascera.

Ocasionalmente, juntavam-se mais alguns académicos à conversa e falávamos sobre os assuntos da atualidade e outras histórias de outros tempos em que ainda não nos conhecíamos, pois a minha chegada era ainda recente. Bebíamos sempre um cabernet sauvignon de seu nome Allesverloren, excelente vinho sul-africano que ganhou o seu nome a partir da quinta onde é produzido. Contaram-me estes meus amigos que os proprietários dessa quinta, em inícios dos anos 1700 foram à zona do Cabo e passaram algum tempo fora. Quando regressaram, toda a quinta tinha sido destruída por um incêndio quer a sua casa quer as suas vinhas. Reergueram tudo e deram-lhe o nome de Allesverloren que significa “tudo perdido”. No meio da história, bebemos mais um copo de vinho e rimo-nos daquela anedota que se contava sobre a atriz americana cujo sobrenome é Witherspoon.

As árvores, nesta altura, que era primavera no sul e outono no norte, estavam floridas, os jacarandás deixavam todas as ruas iluminadas por uma cor púrpura que tornava o chão num tapete permanente e criava grandes arcos, também eles da mesma cor. Sentados no jardim, discutíamos as diferenças entre Portugal e a África do Sul. Contava-lhes sobre o vinho, sobre as azeitonas, sobre o presunto e sobre o pão e reproduzia-lhes não as nossas conversas, mas as mesmas histórias que me contava e que lhe contava. Cada realidade era um mundo diferente que nos dá essa cosmovisão especial, que nos insere nas diferenças dos hemisférios. Dizia aos meus amigos, do outro lado, que a água da torneira gira ao contrário e discutíamos a primavera e o outono, o verão e o inverno.

- Meu caro amigo, aquela mesa aos quadrados azuis e brancos, ainda se lembra dela? Onde petiscámos os carapaus alimados? Aquela em que contava ao meu amigo o momento em que tinha discutido os autores da literatura sul-africana, as diferenças entre o norte e o sul e os carapaus alimados e as fatias de presunto acompanhadas pelo copo de vinho? Pois é. Trocámos dois dedos de conversa e um copo de tinto e celebrámos a amizade.

E no horizonte de uma planície em que dois amigos se encontram, há um copo de vinho. No passar dos dias e das nossas vidas, dois dedos de conversa.