19 Setembro 2015      11:23

Está aqui

ADORMECER

- Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição, e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença (Oração Eucarística II – Intercessões).

Numa noite fria de inverno, no piso gelado de neve, regressando a casa do trabalho distante em terras frias e solitárias, adormeceu ao volante. António adormeceu. Em casa, a família, no lar quente, em sala com tapete de Arraiolos, e com televisão que passava canções de Natal e de felicidade pelo nascimento de Cristo, esperava-o. Em casa, todos esperavam António.

A mesa posta, recheada de carnes e doces e acompanhamentos. O bom vinho, aquela reserva de que António tanto gostava, em garrafas e decantadores, acompanhava o pão de centeio. António sentava-se, habitualmente, ao lado, na mesa de linho, mesa do pão de trigo e outros cereais colocado em pequenas travessas desenhadas para a noite de felicidade do nascimento. A família era António e António era a família. A mesa era o sangue e o corpo de Cristo. O nascimento era a hora de sorrisos e a tradição era o alimento da alma e do espírito. O bacalhau e o polvo estavam no forno. Um bacalhau de grau superior, posta grossa, suculenta e cozinhada em azeite e alho, em cama de pimentos e batatas cozidas a acompanhar. Num tacho, ao lado, avermelhado, da cor da tinta, um polvo já cozinhado esperava que este passasse ao tabuleiro e completasse a refeição inicial. António estava cansado. A viagem de uma noite longa, fria, e sem lua não o ajudava no sentido que lhe ocupava a mente.

Os pequenos corriam à volta das mesas da sala, a família estava toda sentada a conversar e Amália aguardava que as luzes batessem na janela a qualquer momento. António chegaria com as luzes do seu carro, do carro da família. E, António era a família e a família era o António. Amália sentia-se sonolenta, os olhos queriam fechar-se. As ideias de mais uma noite fria de nascimento ajudavam a que se mantivesse acordada e que depositasse mais um toro na lareira para alumiar o caminho de António e para deixar no caminho de António as luzes que traçariam as curvas e as encruzilhadas da vida.

A vida de António era a família e António era a vida da família. Na curva, um monte antes da chegada a casa onde a família o esperava, o carro deslizou no alcatrão e no gelo que se desenhava a partir da água, um líquido puro e transparente que faz da vida aquilo que alimenta o corpo do homem, o gelo sólido e deslizante como aquela esperança que nos escorrega e é fugidia. António, no calor de um carro aquecido, ao som de uma música que proclamava o nascimento e ajudava a encurtar o caminho para casa, António fechava os olhos, sentido o calor dos filhos e de Amália abraçando-o em tons de vermelho e creme, num sofá quente, aquecido pelo espelho da lareira, dos toros que se transformavam entre o laranja e o avermelhado. António não tinha frio e o horizonte escuro parecia mais claro. Os olhos pesavam e via a família toda, sentada à mesa, aguardando a sua chegada, feliz.

- Lembrai-Vos também dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição, e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo: admiti-os na luz da vossa presença. (Oração Eucarística II – Intercessões).

António fechou os olhos durante dez segundos enquanto o carro deslizava e, num momento de calor da família, lembrou-se, recordado dos que adormeceram na esperança da ressurreição, que ele era a família e a família era ele. Em noite de nascimento, a vida de António misturava-se com a de Amália e dos filhos e hoje, todos os que adormeceram na esperança da ressurreição, o acordariam. O carro deslizou e, em ziguezagues, passou o gelo e encontrou o solo sólido e seguro que a família lhe pusera no percurso. Já não via só o escuro e as luzes fracas dos médios do carro. Em frente, os rostos de Amália e dos filhos, uma mesa posta na sala, uma lareira acesa e, na serra em frente, o corpo e o sangue de Cristo, o pão e o vinho sobre a mesa. Aquela era a ceia do nascimento, não a ceia de quem adormeceria e seria recordado por adormecer na esperança da ressurreição. Este não era o momento. Nunca é o momento e nunca estamos ou estaremos preparados para adormecer na esperança de ressuscitar.

Recusamos e não queremos. Somos o nosso percurso, somos linfa e sangue da nossa família, daquela que somos ou da que escolhemos e somos os ramos da árvore, as peças de uma máquina complexa. Somos os que acordamos e os que adormecemos na esperança de algo, seja o que for, em qualquer lado do mundo que sente. Somos.

Ia partir. Ia adormecer. Eram os últimos metros e eram as luzes à janela de casa, onde Amália poderia respirar de novo e onde o seu sangue poderia ser bombeado de novo como por horas não tinha sido. Nessa noite jantariam em família. Celebrariam o nascimento de todos e seriam a família.

À noite, ao adormecer, António segredaria no ouvido de Amália aquilo que ela já sabia porque era a sua vida. Ela deixou cair uma lágrima solitária de tristeza, recordando os que partiram e adormeceram e, beijando a bochecha de António, segredou-lhe.

- Os que adormeceram na esperança da ressurreição não nos querem a dormir o seu sono ainda, António. Sonhemos com o nascimento e com a vida, amor.