2 Junho 2014      01:00

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A sustentabilidade do SNS

A globalização enquanto fenómeno mundial de repolarização e reequilibrio de forças entre as diferentes potências vem, desde há uns anos a esta parte, ditando uma mudança de paradigma na área da saúde, no mundo ocidental. Na ausência ou na escassez de matérias primas potenciadoras do progresso e face à deslocalização da atividade económica para outros locais do globo, a Europa revela-se incapaz de gerar nas suas fileiras novas sinergias de progresso. A conclusão só poderia ser de que o modus vivendi à ocidental custa muito dinheiro ao erário público, mormente em saúde.

Assiste-nos portanto cogitar numa forma de continuar a financiar os nossos ricos costumes. O financiamento pelo Estado das despesas de saúde dos cidadãos constitui, na atual conjuntura, um impasse que carece de resolução. Ora não somente os Estados se revelam incompetentes na procura de novas fontes de financiamento, como estas despesas, ao invés de estabilizarem, crescem desmesuradamente. Por um lado, o advento das doenças crónicas na população, vem fomentar a utilização crescente dos cuidados e, por outro lado, as metodologias terapeuticas e diagnósticas são hoje mais caras do que no passado. Neste contexto, a questão amiúde formulada consiste em saber se a sustentabilidade do SNS se encontra dependente do questionamento ao nosso modelo social solidário de pendor universalista.

De acordo com os dados da Base de Dados Portugal Contemporâneo as despesas do SNS não pararam de crescer, desde 1980, quando eram de 219,1 Milhões de Euros, até 2010, quando atingiram o seu máximo histórico de 10.271.2 Milhões de Euros. Porém, quando todos os indicadores apontavam para um crescimento inexorável das despesas públicas em saúde eis que se produz no globo uma hecatombe económica que espraiou os seus efeitos também no sector da saúde, em Portugal. A crise americana dos subprimes, que levou à insolvência de importantes instituições financeiras, chegava à Europa em 2008 abalando gravemente todo o sistema financeiro. Neste clima de desconfiança, todos os agentes económicos assistiram ao aumento do endividamento dos Estados sob pretexto de adoção de políticas económicas expansionistas. O resultado imediato do aumento exponencial das dívidas soberanas foi a proliferação da ideia da eventual incapacidade dos Estados reembolsarem a divida contratada.

A emergência da ideia de salvação pela austeridade é inspirada da necessidade dos estados se autonomizarem face aos mercados, reduzindo drasticamente a divida pública. Urgiria então reduzir as despesas públicas não esquecendo, en passant, de questionar inclusive as rubricas mais sorvedoras de dinheiros públicos. Somente à luz destes conhecimentos podemos compreender o último relatório bienal da OCDE Health at a glance 2013. Aquele aponta inequivocamente para uma redução da despesa total em saúde nos três primeiros anos de crise. No caso português, entre 2009 e 2011, a redução da despesa total em saúde terá sido de 2,2%, pondo cobro à tendência de aumento médio daquelas despesas entre 2000 e 2009. Assim, o SNS gastava, em 2012, aproximadamente 894,4 Euros por habitante, o que representa um total de despesas em saúde superior à média da OCDE. O documento deixa porém antever a possibilidade da estratégia de ataque ser meramente conjuntural e assentar em pressupostos que se virão, num futuro próximo, a revelar onerosos. Pensamos mormente nos cortes realizados na prevenção da obesidade ou do consumo de tabaco ou bebidas alcoólicas.

Tal como tem sido enunciada, a questão da insustentabilidade consiste em afirmar que o SNS não tem sido financiado com a garantia, para os contribuintes, de que o equilíbrio das contas públicas se encontra salvaguardado. A razão ordena ao decisor público que se corte na despesa, ou se encontrem novas formas de financiamento. A primeira solução implicaria restringir os custos em recursos humanos e materiais, por forma a tornar o sistema financiável. Já a segunda apelaria ou à capacidade do país gerar riqueza, ou ao maior financiamento, pelo utilizador, dos cuidados de saúde que lhe são prestados.A reflexão, tal como aqui foi apresentada, parece remeter o leitor para um estado de desânimo, pois o país não revela capacidade de encontrar novas fontes de riqueza, porque o governo não detém os conhecimentos nem a lógica organizativa para racionalizar na despesa e porque exigir maior contribuição por parte do utilizador é inconcebível atendendo ao nível de vida, em queda livre, no nosso país. Quanto à decisão discricionária de intervir do lado da receita ou pelo lado da racionalização da despesa, parece, do ponto de vista da gouvernance económica, incomensuravelmente mais fácil optar pela segunda. Somente as medidas que permitem viabilizar o SNS debatem-se com problemas jurídicos, políticos económicos e sociais.

A sustentabilidade do SNS é um dilema da vida económica que deriva da generosidade do nosso modelo social. Quando um dia as politicas isolacionistas se extinguiram, cedendo o seu lugar às politicas integracionistas, foi também na saúde dos portugueses que se passou a ler o progresso. Ora a ciência económica não cessa de alertar que na vida não existem ‘almoços grátis’ o que equivale a dizer que um beneficio tem sempre uma contrapartida de sacrificio. Os ganhos em saúde tiveram repercussões do ponto de vista orçamental, que foram camufladas pelo ambiente de optimismo que se respirou no mundo ocidental. Os últimos indicadores apontam no sentido da redução da despesa pública em saúde, desde os primeiros anos de crise. Parece crível afirmar que esta redução, se não totalmente conjuntural, é-o pelo menos em parte. Assim, a questão da sustentabilidade do SNS continua na ordem do dia, pelo que urge equacionar qual o tratamento a dar à rubrica da despesa pública em saúde.