5 Novembro 2016      08:03

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VINHETA DE AUTOCARRO III

"PARALELO 39N"

(Conto em três partes)

A vizinha, na sua amabilidade, caminhava do prédio onde vivia, descia as escadas do terceiro andar, do mesmo onde tinha a janela e onde se sentava a olhar a pequena casa de António. Aproximava-se para deixar uma pequena marmita onde tinha colocado entrecosto assado, carinhosamente preparado para o homem que lá passava os dias. António não conhecia o que a vizinha pensava. Não sabia o carinho e a preocupação que nutria por si. Era a sua sombra. A vizinha deixou, como sempre, a comida no prego e foi às suas compras. Seguia a sua rotina. Tirara também a sua vinheta de autocarro que colara no passe, tal como fizera António. Usá-la-ia todo o mês. 

António, no fim do turno, despediu-se dos homens que se vestem como ele e, como ele não falam muito. Cada um falou nos planos da sua folga. António não falou nada. Despediu-se com um bom dia e caminhou no sentido contrário, em direção à estação dos comboios. Hoje não ia de autocarro. Aproximou-se da estação e esperou calmamente, na plataforma, com três livros na mão e o passe de autocarro em punho. O comboio aproximou-se em velocidade. Não parava nesta estação. António fugiu da sua sombra e... saltou para o comboio. No chão ficaram os livros e o passe onde estava a sua identificação. Na porta da casa ficou a comida até ao dia em que demoliram a velha barraca. Os cães e os gatos apareceram pontualmente, à mesma hora, com o olhar esfomeado, durante alguns dias mais até que desapareceram por completo. A vizinha chorou as lágrimas que ninguém mais chorara quando leu o jornal. O comboio continuou a passar todos os dias na plataforma onde ficou apenas a sombra de um homem cuja identidade passara a ser a de um passe de autocarro.

 

Imagem de Comboios.org