3 Setembro 2016      10:31

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VIAGEM DE BARCO

"PARALELO 39N"

O mar parecia um espelho. Calmo, plano, sem qualquer tipo de ondulação ou toque de brisa. Ao olhá-lo via-se o céu e a nossa cara refletida como se fossemos um Narciso apaixonado por si próprio. Nesse mar calmo, apetecia-me navegar além das ilhas verdes e rochosas que se plantavam, além da minha imaginação e navegar dentro dela, como se eu próprio estivesse na minha cabeça e a navegação fosse feita à vista, dentro dela, sem astrolábios ou materiais de navegação.

A viagem seria feita num barco de dimensões simples, construído ao mais pequeno pormenor. Não era um iate luxuoso, nem uma piroga com dois ramos de bambu de lado para manter o equilíbrio. O mar era calmo, parecia um espelho que refletia o meu rosto, o céu azul e as nuvens brancas, escassas que se deslocavam no ar e criavam imagens que a minha cabeça se encarregava de transformar em elefantes, pássaros, casas, rostos…pessoas. O barco tinha uma cor branca e chamavam-no de Memoriam. Deixámos a costa pouco antes das dez da manhã e, empurrado pelos fortes homens de aspeto frágil que o conduziriam, que nos conduziriam à outra ilha. Zarpávamos de Bali e atracaríamos nas Gili. Pela primeira vez e única até agora, faria o caminho entre essas ilhas das milhares do arquipélago indonésio. Os companheiros de viagem eram muitos, não conhecia o rosto de nenhuma exceto aqueles que me acompanhavam. A distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada era feita em minutos e não em milhas ou quilómetros.

Fechei os olhos e vi o céu azul. Abri-os e, no alcance da vista, as águas azuis e cristalinas. No fundo, dezenas de peixes rodeavam o barco e prontificavam-se para fazer a viagem comigo no barco. O único ruído que me perturbava os pensamentos era aquele feito pelo motor do barco que deixava, ao mesmo tempo, um intenso cheiro a gasolina queimada, nos fumos que ficavam atrás. O ar, vindo de frente, era uma brisa molhada pela água que, dos lados saltava e nos refrescava. As ilhas, imóveis, continuavam a passar-nos ao lado na minha perspetiva e pareciam chamar-me. Não que as rochas fossem os seus olhos ou a vegetação fartas cabeleiras mas o seu apelo e chamamento ecoavam na minha cabeça, enquanto a imaginação se adaptava e transformava aquilo que era simples, concreto, real em figuras complexas, abstratas e surreais, como se retiradas de um quadro de Dali ou passassem a ser os monstros que outros navegadores, muitos anos antes, afirmaram ter visto.

Os minutos de viagem encurtavam-se, as milhas e quilómetros percorridos aumentavam e diminuíam os que faltavam para o ponto de chegada. Eram três ilhas, Gili Air, Gili Meno e Gili Trawagan. Pararia nas duas primeiras antes de chegar à última. Entre elas, perderíamos companheiros de viagem que recuperaríamos no regresso. À ida, o meu rosto espelhado na água azul, translúcida, a imagem da minha paz interior. Engraçado como transformamos o mundo à nossa volta com a força dos nossos sentimentos e como, tantas vezes, o que nos rodeia, mesmo não sendo um espelho, reflita o que pensamos, sentimos e ecoamos.

O regresso. No regresso, a vontade de não terminar os dias na ilha plana e calma. As areias brancas e o mar azul e calmo. O barco era o mesmo, mas as águas já não espelhavam o rosto da mesma forma que o faziam na primeira vez. As pessoas eram as mesmas, as que me acompanhavam e as que não conhecia. Todos buscavam nas águas o reflexo do rosto que teimava em não aparecer. As nuvens brancas já não se transformavam em figuras imaginárias. No seu lugar, um cinzento tão carregado e um vento que sussurrava desassossego. Pareciam aproximar-se e querer vir ao nosso encontro. Pareciam caminhar contra nós.

Em breve, sobre nós cairia uma quantidade torrencial da água quase tão quente como a que no mar se agitava também. Ficaríamos retidos na primeira ilha até que passasse a tempestade. Sentado num alpendre de bambu, olhava a chuva e acalmava também a minha vontade em ficar à medida que as nuvens cinzentas e enfurecidas se afastavam de nós. Nesta viagem que começara e interrompera, também fiz a minha interior ao longo dos dois percursos.

Viajamos sempre dentro de nós próprios, em viagens lindas ou assustadores dependendo, daquilo que nos apaixona ou atormenta. À medida que as milhas aumentam e se encurtam, vivemos duas viagens, uma interior e uma exterior e essas são sempre únicas, sempre diferentes. Cada dia, cada vez mais, vale a pena viajar, nem que seja no espaço interior da nossa casa, amalgamado no nosso próprio espaço interior.    

 

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