4 Fevereiro 2017      11:18

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VERTIGENS

"PARALELO 39N"

Andava em cima das ripas e dos andaimes como se fosse um bailarino. Andava tão alto nos andaimes e dançava ao som da música que o velho rádio tocava incessantemente desde as 8 da manhã, hora de pegar o trabalho, até às 5 da tarde, hora de largar o batente. Parecia um dançarino sem calças de licra. Tinha, no lugar das sabrinas de dança, botas de trabalho pingadas com restos de cimento e o pó da areia e do próprio cimento em si.

Às 8 da manhã lá estava, junto à grande parede que começava a ganhar forma, fruto do seu trabalho e de tantos outros. Não era pedreiro, era servente. As mãos estavam ressequidas do cimento e da força que empregava a acartar baldes de massa. Junto da betoneira, construía sinfonias. Em movimentos circulares, a betoneira marcava o passo das danças que os homens faziam. Lá no alto, saltando entre andaimes e ripas, os pedreiros faziam movimentos cronometrados espalhando a massa no meio dos tijolos, colocando o nível e pondo a sinfonia no alto, rebocando cada pedaço, alisando o estuque.

Saltava entre os andaimes e as ripas com dois baldes, um em cada braço, equilibrando-se. Não tinha vertigens nem podia ter para andar em alturas tais. Como artista de circo, dançarino, parecia fazer acrobacias como se sentisse uma rede debaixo de si. O trapézio eram as ripas e os andaimes. A dança do circo, o som dos tambores confundido com os martelos elétricos que ressoam no betão.

O servente ao meio dia parava a dança e sentava-se na abrigada da parede que já fazia sombra. Tirava do saco o termos com o almoço ainda quentinho e juntava-lhe um copo de vinho para ajudar a digestão. Era o intervalo do trabalho como se fosse uma pausa na dança diária que era a sua vida. O servente subia lá acima, levava os baldes aos patrões e a casa ganhava feitio… Era moderna, mais de trinta andares e, visto de longe, o trabalho dos homens parecia ensaiado. Era, de facto, todos os dias baseado na repetição. Pouco a pouco, a coisa ganhava jeito.

O servente nunca ia lá acima. Não subia além do meio onde se sentia seguro. Na dança que fazia, tinha vertigens e nunca olhava para baixo. Por isso, o ritmo e a dança imaginária, que imaginamos nós, fosse tão perfeita. A parte da tarde completava-se com o por do sol. Uma dança ritmada, acrobacias pensadas que encerravam não com o descer da cortina ou com as palmas do público, mas com o sol a desaparecer no oeste. A noite chegava e os espetáculos encerravam às cinco. As portas fechar-se-iam se já as houvesse. E na dança compassada, todos abandonavam os postos. O maestro, encarregado de obras, fechava os livros e punha a batuta de lado. Os instrumentos lavavam-se com a água corrente e à noite não haveria naquele lugar mais gente. Só o segurança que impedia que roubassem os instrumentos da dança – o nível, os baldes, os capacetes, as pás e talochas.

O dia seguinte seria o dia seguinte e a obra seria a obra no dia seguinte, um pouco mais de jeito, um pouco menos de construção para fazer e o homem que continuaria a ir só até meio com asas que pouco voam, influenciadas para baixo pelas vertigens. Um dia, muitos dias seguintes depois as paredes estariam pintadas, os andaimes teriam desaparecido e os instrumentos dos homens que fizeram parte do elenco deixariam de o fazer. Um dia por lá passaria o servente e olharia os vidros e as paredes e o produto final do trabalho empreendido, de tantos dias de ensaio. E lá em cima, as alturas e na mente do servente, as vertigens.

 

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