5 Agosto 2017      15:11

Está aqui

UM PAR DE PEÚGAS

Pôs uma saqueta de chá adelgaçante numa chávena de chá, encheu a cafeteira de água à medida da chávena, ligou a chaleira elétrica e sentou-se na cadeira. A cadeira recostava-se e deixava que a sensação de ir e voltar se mantivesse numa constante permanente, ao segundo. A sensação embalava-o enquanto abria e fechava os olhos como se estivesse a meditar. Em meditação profunda, o barulho de fundo era o volume da água a ferver na chaleira que se ouvia em gradação.

Enquanto o clique final na gradação da água que entrava em ebulição não soava, o homem ia movimentando a cadeira e pensando no que tinha sido o seu dia e como iria ser a sua noite. Como iria dormir, como iria ser o sonho ou o pesadelo que o faria acordar às 3 da manhã em sobressalto e levaria o sono durante algumas horas? Pensava. A parede vazia em frente não lhe dava as respostas que procurava. Não poderia dar. Era uma parede branca e as paredes brancas servem para vermos o que queremos imaginar que lá existe e não para ver as respostas corretas das perguntas tantas vezes incorretas que se fazem. Um clique.

A água tinha fervido e a chaleira desligara-se. O homem levantou-se e foi pôr a água na chávena que tinha a saqueta e trouxe-a consigo para junto da cadeira que recostava e ficava em frente à parede branca, onde ele pensava nas coisas que não tinham sido mas poderiam ser, onde a imaginação fazia desenhos de coisas abstratas, o que não fazia sentido porque as coisas já de si são abstratas e confusão e não determinam exatamente o que é. Olhava, mesmo assim.

Ao lado, uma estante, quase como uma escrivaninha que tinha papel branco em cima, esperando que a tinha lhe desse sentido. A caneta ao lado era a enxada que precisava para semear as palavras. E não cavava nada porque não queria. Repousava tudo em silêncio. Não havia o barulho do relógio a contar os segundos porque não havia relógio. Simples.

A água da chávena, cuja infusão da saqueta fazia com que o vapor se fizesse sentir já meio aromatizado. Descalçou os sapatos de vela sem precisar desatar os cordões. Se todos os cordões da vida fossem como os dos sapatos que se podem desatar, seria mais fácil. Os da vida dão mais algum trabalho. São nós górdios. Pensava. As meias ficaram à vista. Entre a parede branca onde via imagens que não existiam mas lhe faziam companhia e ele próprio, estavam as meias pretas que escondiam os dedos dos pés e ao mesmo tempo se mexiam como uma marioneta de um ventríloquo. Não conseguia por os pés a falar. Soltou um sorriso maroto, como se tivesse feito uma asneira inofensiva ou estivesse com pensamento de criança traquina. Eheheh. Ria.

As meias continuavam a fazer os movimentos que lhes ordenavam. Nelas, todas negras, um buraco. As meias tinham um buraco. Como era possível? O cuidado que tinha, as atenções que lhes dava e as meias tinham um buraco. Quase tão grande quase se via todo o dedo grande. Quase fugira esse dedo e se tornara rebelde. As meias não podiam ter um buraco. Entrou em pânico. Tinha de haver alguma explicação para um buraco na meia que andava escondia dentro do sapato, mas mesmo assim. Desinquietou-se.

Assentou os pés no chão, ambos, com força, e olhou com mais pormenor. Voltou a sentar-se na cadeira e voltou a levantar as pernas e olhar as meias. Quase conseguia ver a parede branca através daquele buraco. Descalçou as meias. Estava enfurecido, impaciente. O chá bebeu-se de um trago. Calçou os sapatos sem meias. Agarrou nas chaves a na carteira. Saiu.

Apanhou dois autocarros e um comboio e foi à loja das meias onde sempre comprava as meias que eram iguais àquelas e a todas as outras. Sem aquele par, com aquelas meias impróprias para uso pelo buraco que tinha quebrado a harmonia, ficava só com 19 pares. Tinha de ter 20 pares.

Entrou na loja. Olhou o empregado. Tremeu o lábio. Olhou na direção das meias. Apontou. O empregado deu-lhe um par de meias iguais a todas as outras. Pôs os euros no balcão. Sentou-se no banco de esperar. Descalçou os sapatos. Calçou as meias. Sorriu. Sentia a harmonia de quem tem um par de meias novo. O empregado acenou, olhou para a porta enquanto o homem saía e sentou-se no banco. A loja estava vazia e a clientela contente.

Imagem de capa de roxsar.com