9 Janeiro 2016      11:32

Está aqui

TRAÇADO GEOMÉTRICO

“PARALELO 39N”

Um homem caminhava com o guarda-chuva a evitar que as poucas gotas que começavam a cair o molhassem. Caminhava envergando um sobretudo azul escuro e com o pensamento em coisas urgentes que o levavam ao destino. Debaixo do sobretudo um fato, impecavelmente limpo a seco. Na rua onde caminhava viam-se desenhados em cubos claros e escuros coisas várias que podiam fazer viajar a nossa imaginação.

O homem caminhava na calçada, já molhada pelas poucas gotas da chuva que já tinham caído. Quando chegar ao fundo da rua, já toda a calçada estará molhada e correrão, pelos cubos, as gotas de água que já caíram. O homem segura com firmeza o guarda-chuva. É um guarda-chuva preto, sóbrio, como todo o arranjo em volta do homem.

O homem continua a caminhar. Usa óculos de massa escura com graduação de 1,25 num dos olhos e 2 no outro. As imagens que lhe passaram pelo olhar marcaram-lhe a visão. No dedo anelar, uma aliança em ouro, envelhecida com o passar do tempo e com os anos de casamento. O homem de que aqui se fala caminha em direção ao edifício mais alto no fundo da rua. A rua podia ser numa qualquer cidade da Europa, perfeitamente desenhada em traçado geométrico, perfeitamente organizada nos números pares e ímpares, como se o mundo se organizasse em volta dos traçados e da geometria desta vida. O homem caminha apressadamente e a calçada caminha em sentido contrário. Nos desenhos que espelha no céu, veem-se floreados, imagens abstratas e tudo o que pode sucumbir aos raios de Sol, quando a chuva que começa a cair com mais velocidade, se dissipar no meio dos desenhos geométricos.

Continua a caminhar, cruza-se com homens igualmente apressados e concentrados, com mulheres arranjadas e concentradas em observar os destinos dos traçados da cidade que os acolhe. Caminham todos em sentidos opostos, entre si. O homem, concentrado em se proteger das gotas de chuva que caem mais rápidas, prolonga os passos, nos pés enfiados em sapatos negros, engraxados no dia anterior por aquele outro que se senta à porta da estação dos comboios. Sobre eles, as calças engomadas e um casaco sem a mínima crítica, vincado à perfeição.

No bolso, uma carteira em cortiça e um telemóvel que ainda não é smartphone. O aparelho emite um ruido de quem quer falar com o homem que segura o telemóvel. Atarantado com a chuva que já caía veloz, já estava no fundo da rua, preocupa-se em encontrar o telemóvel perdido no bolso, distraído do cabelo que se despenteava com o vento, tentava atender a chamada, agarrar no guarda-chuva e evitar que a perfeição engomada do vestuário se dissipasse.

A chamada durou poucos segundos. Era a mulher, que tinha uma aliança semelhante num dedo tão igual à sua, quem lhe ligava. Queria saber se já tinha chegado ao sítio onde queria ir. Respondeu-lhe que não, que faltavam pouco segundos, que faltava virar a rua e entrar na portada grande, do grande edifício que era o maior da rua. Respondeu-lhe que lhe telefonava quando chegasse, que partilhava o sucedido quando saísse. A mulher desligou a chamada e o homem voltou a compor os seus pensamentos e a sua indumentária tão organizada.

Virou a esquina, a água enchia as entradas dos esgotos e molhava os sapatos do homem. Entrou pela portada da casa grande e, dirigindo-se ao rececionista, pediu para falar com o médico do segundo esquerdo. Ele esperava-o. Subiu pelo elevador e sentou-se na sala de espera. Pela janela, os edifícios em traçado geométrico perfeito. O médico chamou-o e o homem recebeu um envelope. Cumprimentaram-se, falaram durante vários minutos e o homem voltou a sair do edifício. A chuva já tinha parado e o guarda-chuva estava enrolado e caminhava agora ao lado do homem. Telefonou à mulher e disse-lhe que os exames e as folhas já estavam em sua posse e tudo dera negativo e, nas tabelas, os valores harmonizavam-se no normal. O cancro desaparecera. Podiam recomeçar a desenhar as suas vidas e recomeçar a sonhar em traçados geométricos tão perfeitos como a calçada e as ruas da cidade.

 

Imagem daqui