26 Fevereiro 2017      11:52

Está aqui

TERMINATOR (1984)

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Tempo ficcionado versus tempo científico, um gozo profundo…

Sim, mas previamente: Schwarzie. Um tipo cá de casa. Caso simples e estranho de tão eficaz. O fraco actor é o robôt perfeito e nunca mais deixará de o ser. O sotaque maquinal ajuda, não destrói.

Um argumento que, como alguém disse –e cito, “sobrepõe a esperteza à inteligência”, e talvez por isso funcione na perfeição. Ou pareça funcionar.

Curiosa ainda a mensagem inicial –dizem-nos que tudo se vai desenrolar “esta noite”; afinal são duas noites e um dia.

Parece funcionar, portanto, mas, tal como a eficiência do Terminator resvala para que haja filme, vamos fazer de desmancha-prazeres, vamos entortar à nossa maneira como bons e cruéis espectadores, já que houve filme:

Uma viagem no tempo, um filme sobre uma viagem no tempo. Um filme sobre uma viagem no tempo sem máquina do tempo –Sim, sabemos numa única linha de diálogo que existiu no futuro um mecanismo que permitiu as duas viagens, a de Kyle e a do Terminator, mas não nos é dado a ver, da sua constituição nada sabemos, e até nos informam que o fizeram explodir logo após. Sobre a viagem, Kyle refere genericamente uma luz branca, dor, um renascimento. Logo nem é um filme sobre uma viagem no tempo, é sobre as consequências de uma viagem no tempo. E aqui, temos necessariamente que voltar à citação de há pouco, à esperteza sobre a inteligência. Viajar no tempo, quimera que, a bem da discussão, tomaremos a partir daqui como certa.

Ou seja, Los Angeles, 2029: John Connor (que não conheceremos), o líder da resistência humana na guerra contra as máquinas, está prestes a contribuir decisivamente para a vitória dos humanos. As máquinas (presumidamente eficazes e não desesperadas) decidem então enviar para o passado um Terminator (robot de carne, sangue e metal) para matar a mãe de John Connor antes do nascimento deste. John envia, por sua vez, um agente (humano) para o evitar. “Porque não matar John durante a guerra?”, “A guerra estava ganha, matá-lo naquela altura não faria qualquer diferença!”, tudo muito bem explicadinho e dado à ironia: ”a guerra estava ganha”, a guerra do futuro, ainda por ocorrer, e sem pontas soltas. Pois … Viajar no Tempo, sim, um facto, mas deve ter algumas regras, certo? Claro que sim.

Explicitemos, três normas com algumas sub-normas que abrangem o que há para abranger –tais como podem ser facilmente encontradas em qualquer descrição enciclopédica:

A –Existe uma única linha do tempo, a que corresponde uma única história consistente e imutável. Todos os acontecimentos existem, portanto, numa única linha, que não permite comunicar com nada fora dela. Neste raciocínio não há espaço para contradições / paradoxos temporais. Dito isto, de que forma são evitados os paradoxos:

A.1 –Supondo que o viajante mantém durante e após a viagem as mesmas leis da física independentemente de quando se encontra na linha do tempo. Atinge-se este estado pelaaplicação do Principio da Consistência de Novikov –de acordo com o qual a linha do tempo é totalmente fixa. O viajante, ao fazer parte dela, não tem quaisquer condições de a mudar. De outra forma, se algum acontecimento existir de molde a criar um paradoxo, então a sua probabilidade é nula. Ex: Se um filho, que nunca conheceu o pai, falecido num acidente antes do filho nascer, viajar para o passado de tal modo a que impeça o acidente. Então, sem acidente, e recorde-se que estamos na hipótese da linha temporal única, não haveria motivação que o filho no futuro viajasse para o passado para impedir o acidente. Raciocínio circular, simultaneamente criador e impeditivo do paradoxo.

A.2 –Outra hipótese: Supondo que o viajante tenta alterar o passado de forma a condicionar o futuro, então são criadas novas leis da física que o impedem de intervir. Como, por exemplo, o viajante perder a função corpórea.

B –Existe uma única linha do tempo, mas mutável.

B.1 –Uma hipótese: é relativamente fácil intervir e mudar a História. Mesmo pequenas alterações provocadas pelo viajante no passado (até imperceptíveis) influenciam enormemente o futuro. É o Tempo de, por exemplo, O Regresso ao Futuro. Nesta hipótese, a viagem no tempo é uma arma de consequências potencialmente devastadoras.

B.2 –A outra hipótese: as mudanças são possíveis, mas tão mais difíceis de operar quanto mais importantes são os acontecimentos que mudam. Como se a história fosse, de alguma forma, resistente à mudança. Neste modelo, matar Lenine antes de subir ao poder (diferente de antes de nascer, pela quantidade de ramificações desta conjuntura) poderia, ainda assim, gerar consequências semelhantes, pois nesse caso, outro bolchevique subiria ao poder com ideias naturalmente conformes. Diria o cínico que apenas serviria para dar a Estaline mais uns anos de poder. Podemos olhar para este modelo como uma espécie de solução de compromisso com a História.

C –Linhas temporais alternadas, com múltiplas histórias possíveis que não coabitam. Neste caso, o viajante pode alterar um facto importante no passado, mas “apenas” para (na ignorância do viajante?) criar uma outra / nova linha temporal paralela à anterior. Hipótese de múltiplos universos temporais e que garante a não existência de paradoxos, pois mudar implica criar, mantendo a linha anterior.

De todas as hipóteses, curiosamente ou não, a que mais tem sido utilizada na ficção é a hipótese B, ou a hipótese B num universo temporal que, afinal, é A, talvez porque os paradoxos e as tentativas de os evitar lhe confiram motivação e suspense acrescidos. De ficção no modelo C, o único caso de sucesso criativo conhecido é um livro da autoria de David Gerrold: “The Man Who Folded Himself”. As aventuras de um jovem que descobre um cinto que lhe permite viajar no tempo, e de tantas linhas temporais que consegue criar no seu périplo (cada linha temporal pode assemelhar-se a um desejo cumprido), acaba por dar consigo a viver num mundo onde só ele e variações dele existem.

Terminator – num olhar inicial o primeiro filme, mas o argumento pode ser estendido à série –parece respeitar o Principio de Novikov, pois qualquer tentativa de mudar eventos relevantes do passado apenas certifica o que sabemos do futuro –dito de outro modo, as tentativas de mudar a história apenas a confirmam. A série caminha para a sua inevitabilidade, querendo fugir-lhe. Mas, por outro lado, o próprio filme “acredita” numa linha temporal mutável. Kyle diz a determinada altura: “One possible future. From your point of view.” A ficção tem destas coisas, acredita em si própria com tal fé que para se afirmar não hesita em mudar de direcção, em atravessar paredes invisíveis. Talvez, resumindo, dito friamente: o filme (-a missão -) possa não servir para nada, se lhe for conferida, e podemos fazê-lo, vida própria.

Outro conceito, sequência lógica de Novikov, é a Compossibilidade–conceito filosófico de Leibnitz assente na coexistência e nas suas oportunidades e possibilidades –tal como concebido, como Princípio, pelo filósofo analítico David Lewis. Diz Lewis, utilizando como partida o Paradoxo do Avô (um dos mais frequentemente utilizados nestas discussões): “Imaginemos alguém com um ódio tão profundo pelo seu próprio avô que apenas vive para uma ideia, a de o poder matar. Primeiro problema –o avô já morreu. Antes de morrer, no entanto, deixou uma fortuna enorme, que o neto utiliza para inventar uma Máquina do Tempo. Depois de várias tentativas falhadas lá consegue criar um dispositivo que funciona…e eis a oportunidade: viajando para o passado, o neto poderá finalmente cumprir o desejo e matar o avô. Viaja então para o passado, para um momento em que o avô ainda era jovem, compra uma arma e prepara-se para disparar sobre o avô.” A questão a colocar será então: “Pode ou não fazê-lo?” Se assumirmos, e já o fizemos, que ele viajou de facto para o passado, comprou uma arma, apontou aarma e se prepara para disparar, pode fazê-lo? Diz então Lewis que devemos centrar-nos na expressão “pode”. A palavra deve ser olhada no contexto dos factos em correlação com a especificidade da conjuntura analisada. Aparentemente pode –está no passado, tem a arma e o avô na mira, basta premir o gatilho. Este conjunto de factos parece permitir o disparo e o sucesso do disparo. Mas outros factos são também relevantes –e segundo estes a coexistência não parece ser possível. Se matar o avô, não existirá neto, não existirá fortuna, não existirá máquina do tempo, não existirá viagem ao passado, não existirá assassinato. Ou seja, analisando outro conjunto de factos também relevantes a situação já não parece tão segura. Pode ou não pode matar o avô? Como fazer coabitar estes dois conjuntos de factos se o neto matar o avô? Então, diz Lewis, afirmar “O neto não o faz mas pode fazê-lo, pois tem todas as condições para o fazer” e “O neto não o faz e não pode, pois é logicamente impossível que possa mudar o passado dessa forma”, não são frases contraditórias, são ambas verdade à luz dos factos relevantes para a situação. O neto pode e não pode consoante os factos, sendo que não o fará. E de que forma? “Talvez escorregue”, diz Lewis, “talvez a arma encrave.” Em todo o caso, não lhe será possível logicamente mudar o passado.

Não é tudo, continuando a desmanchar prazeres narrativos: ao folhear um livro, Terminator and Philosophy, um ensaio lá para a página cento e tal, de uns tais Robert Delfino e Kenneth Sheahan, começa assim: ”Porque certas questões não podemos deixar de as colocar. Filmes como Terminator excitam e emocionam porque colocam carne, sangue e efeitos especiais em questões metafísicas. Mas tem falhas.” A que falhas se referem? Um problema irresolúvel: Kyle Reese precisava de ter entrado na máquina do tempo, dispositivo, o que seja, exactamente ao mesmo tempo que o Terminator para que a linha da narrativa do filme pudesse acontecer. Atenção que para o caso acredita-se na possibilidade de viagem no tempo ao longo de uma linha temporal única (e potencialmente mutável). Então, se Kyle entrasse no dispositivo após a partida do Terminator (e o após pode significar um período de tempo tão curto quanto se pretenda), a sua missão seria: ou impossível ou desnecessária. Pois o/os efeitos na linha do tempo do futuro (o presente de Kyle antes de entrar no dispositivo) da missão assassina do Terminator far-se-iam imediatamente sentir (a propriedade da compressão do tempo a issoobriga:imaginem que um amigo vosso partiu há dez minutos numa máquina do tempo com o vosso telemóvel acabado de comprar e o enterrou sob o lugar em que agora se encontram os vossos pés, fê-lo em...novembro de 1900, época para a qualviajou; se o desenterrarem neste instante, não terão nas mãos um telemóvel novo em folhae somente um pouco sujo de terra, mas um objecto com a erosão de 115 anos, que efectivamente passaram desde que o vosso amigo o enterrou). Isto é, se o Terminator partiu primeiro –ou matou Sarah Connor e, portanto, impediu o nascimento de John, ou não e falhou a missão. Kyle, não entrando no dispositivo exactamente ao mesmo tempo do Terminator, já faria parte de um futuro onde a missão do Terminator tinha ou não sido cumprida e sentiria imediatamente as consequências dessa condição. A sua viagem –no contexto específico do filme –seria sempre, ou supérflua para o curso dos acontecimentos ou impossível de se verificar. Ora é-nos dito pelo próprio que o Terminator já tinha partido.

Mais, mais, revela-se um auditório autoflagelado e com tendências masoquistas: os paradoxos ontológicos, ditos também paradoxos de conhecimento ou de informação, nos quais algo pode existir sem ter sido criado. Exemplo (um dos mais utilizados): o caso Shakespeare –Alguém viajava para o passado, para o tempo de um Shakespeare jovem, quando este ainda se iniciava como dramaturgo e procurava a primeira obra, e levava um livro, súmula de todas as obras de Shakespeare. Uma vez na presença do ainda imberbe Mestre, o viajante deixava o livro à sua disposição e regressava ao seu tempo. O futuro génio, talvez com um ar espantado, diria “Meu Deus, isto é a minha cara!”, e limitava-se a copiar as obras para publicação ao longo da vida. Em rigor, a linha do tempo continuaria lógica, mas quem é o autor das obras de Shakespeare? A única resposta possível seria ninguém… O raciocínio do caso Shakespeare, transportado e aplicado no universo de Terminator, põe em evidência pelo menos dois paradoxos deste tipo: 1) John Connor, que já teria de existir para que pudesse nascer e 2) a Skynet, que também já teria de existir para poder ser inventada pela Cyberdine.

Ainda assim, e finalmente aconchegados na cadeira fofa, declara-se que nada pode quebrar o poder de um filme como Terminator, precisamente porque perdura pelo lado mais puro da imaginação –de outra forma, procura (e encontra) a sua legitimidade no cinema, na dimensão criativa e espectacular de uma arte geradora de expectativas que entende perfeitamente. Como também entende (sem ironia) o tempo que vive, o das ciber-dinâmicas, e fá-lo ao nível do corpo. Onde Gibson (de Neuromancer) fabricauma linguagem, Cameron cria um Universo baseado no corpo –e esta escolha é uma necessidade do cinema, da sua linguagem. Pois o corpo permite visualizara simulação. O corpo, o aspecto humano, perde-se até restar o vermelho luminoso do olho e o esqueleto metálico. Esta humanidade simulada, desencontrada, encontra o eco perfeito na evolução do cinema durante os anos seguintes.

Quando o Terminator perde o corpo e se revela esqueleto metálico –já o sabíamos de momentos anteriores do filme, perde o que pouco de humano tinha (desde logo a linguagem) e quando o vemos avançar, de andar desajeitado, e note-se que o desarranjo é provocado pela impossibilidade dos efeitos-especiais da época –sem o CGI, resta o stop motion, essa visão assustadora, tão old-school, molda necessariamente a nossa forma de olhar. O que é humano é humano, o que não é humano é assustadoramente não humano (-é efeito). É-nos permitido distinguir, demarcar. Em Terminator 2 vivemos algo completamente diferente, o metal líquido quebra a barreira, desumaniza sem uma verdadeira fronteira, sem esperança, ainda que a simulação seja aparentemente mais pujante –aquilo parece ainda mais corpo mas já não é nada corpo, falta-lhe carne e falta-lhe sangue. A versão boado Terminator de Schwarzenegger, no segundo filme, ao manter a carne e o sangue, pelo contrário, pode evoluir para uma espécie de humanização. Curiosamente, vinte anos depois, também o mesmo se parece estar a passar com o cinema, onde o CGI simula e torna a imagem aparentemente real, mas à custa da narrativa, da capacidade de contar histórias (como é óbvio, não estamos perante uma consequência indispensável, mas parece ser uma evidência). E porque tudo deve ter um fim, que se termine da única forma possível: por estes caminhos encontramos a beleza (inocente e pura) de um filme como Terminator–imaginação ilimitada, uma história com uma luta desigual, uma superação, um twist final brilhante, o lirismo trágico de uma história de amor sem tempo nem espaço para existir. Podemos pedir mais? Sim, tal como podemos sair da sala para a noite fresca com um sorriso.

 

Imagem de worldversus.com