27 Dezembro 2015      13:19

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SOLIDARIEDADE SELECTIVA E OUTRAS HIPOCRISIAS

Devo confessar que nunca fui uma pessoa de cerimónias de bem parecer e á medida que o tempo passa essa minha característica vai-se intensificando, desconfio. O que para uns possa parecer rude da minha parte para mim parece-me apenas honestidade e um quanto de escassez de paciência de que, não se engane, todos sofremos mas poucos admitem. Se durante todo o ano já sofro dessa síndrome quando chegam o Natal e a Passagem do ano essa síndrome aumenta de forma a tornar-se insuportável para uma convivência se não harmoniosa, pelo menos calma entre mim e os restantes seres humanos.

Caro leitor, não me olhe já pela lupa preconceituosa da hiperbolização da interpretação ofensiva das palavras ditas que eu sei serem tão normais quanto ridículas actualmente. Não sem antes conseguir compreender que essa ofensa pessoal e gratuita de que mais de metade da população sofre não são mais que as próprias frustrações a criar uma barreira ilusoriamente impenetrável nas taras e manias de cada um. Não sem antes compreender que não é propriamente a questão de se sentir ofendido que me causa uma certa coceira, mas sim o facto de se ofender somente com assuntos fúteis e vãos que pouco oferecem ao mundo, com características pessoais e intimas que pouco respeito lhe dizem ou com palavras e ideias que não são única e exclusivamente dirigidas para si.  – O que me incomoda é que tudo o que é relevante nos passa ao lado ou passa por nós como um desconhecido em passeata: olhamos, julgamos, continuamos (geralmente refastelados no sofá de casa sem mexer um único dedo e sem saber o contexto daquilo que estamos, erroneamente, a julgar).

Isto passa-se um ano inteiro para nas últimas semanas de Dezembro e nas primeiras de Janeiro se suspender magicamente, como toque de condão, e o mundo experienciar não a verdadeira paz, não o verdadeiro amor, não a verdadeira solidariedade mas um retrato, por mera sorte ou oportunismo, sempre bem documentado e exposto, hipócrita e dúbio, daquilo a que chamam “espírito natalício”.

Deixa-me deveras curiosa como o ser humano, quando precisa de renovar por um novo ano a sua patente de “boa pessoa” consegue encontrar sistemas como o substituir da palavra “solidariedade” por “espírito natalício” que no fundo servem apenas para descansar a sua própria consciência e lhe oferecer noites de sono descansadas. – Claro que o uso da palavra solidariedade dá muito mais jeito aliada a este espírito natalício: dá demasiado trabalho ser solidário 365 dias por ano portanto façamos da solidariedade uma característica da quadra natalícia e não do ser humano altruísta. Assim conseguimos ser todos altruístas e deixar aqueles que nos rodeiam orgulhosos num orgulho também ele forjado. Como é comum dizer-se: conseguimos sair todos bem na fotografia.

O que esquecemos é que fotografias não apagam as nossas atitudes do restante ano tal como frequentar a igreja durante todo esse tempo não nos salva se o nosso ego for maior que a nossa altura e a nossa riqueza material, muitas vezes fruto do sacrifício de quem realmente sabe o que é sacrifício, for medida para comparação de dignidade e tratamento alheio. – Já defendia o Messias que somos grandes quando somos pequenos e, não se engane, se ele olha por si quando você precisa ele também olha por si quando passa, por exemplo, por voluntários e os olha com desdém.

Ah o voluntariado! Tão agradável de executar durante meia hora para que nas outras duas horas nos entretenhamos a criar um álbum de fotografias apenas com o propósito de por nós dizerem: Vêm como sou boa pessoa? Conseguem perceber como sou nobre e solidário? – Desconfie sempre de solidariedade e bom coração contados na primeira pessoa.

Posso dizer-lhe, caro leitor, que ser voluntário tem pouco que ver com promoção pessoal, na verdade, mas bastante com o testar dessa minha pouca paciência de que lhe falo no início deste artigo. Sendo voluntária sempre que me chamam por necessidade e, não só para ajudar pessoas mas animais também, já experienciei a avareza do ego inchado por diversas vezes, saindo sempre da situação frustrada pela falta de justiça quando ela é mais necessária. Perdi a conta aos momentos em que fui olhada de soslaio com aquele esgar de desprezo bem marcado por indivíduos que, desfilando nos seus “Merrels” nos seus “Timberlands”, nas suas “Xuz” de mil e poucos modelos, recusaram sequer ouvir-me ou responder a um “Bom dia”. Lembro-me particularmente bem de algumas respostas fracamente arquitectadas acompanhadas de um “foge-foge” que me fariam rir se não me fizessem compreender, com uma súbita estalada da realidade, o quão egoístas as pessoas conseguem ser. E, por incrível que lhe possa parecer, aquelas que mais dificuldades têm em termos monetários são aquelas que mais contribuem. – Penso que a isso se chama verdadeira empatia, a velha máxima de que necessitamos de passar pelas situações para realmente as compreendermos e mais, as sentirmos, e que gradualmente me parece mais real.

Tendo passado por essas situações e vivendo numa cidade pequena é-me extremamente fácil e automático compreender nesta época que vivemos quem são os que necessitam do “espírito natalício” para se consagrarem: geralmente fazem-se acompanhar de palavras caras e aparentemente sentidas, de grandes discursos que evocam a nobreza de coração e espírito que idolatram as máximas ternas da união e fraternidade e de um remate visual final de crianças negras meio-nuas sorrindo ou de um sem-abrigo adormecido á chuva. O engraçado é que após esse discurso e essa imagem seguem-se as do consumismo exacerbado do Natal, os presentes que, dizem eles, são uma lembrança e um símbolo do amor e que se compreendem por o último modelo de “Iphone” disponível, três pulseiras da “Pandora”, um carro novo porque enfim, o velho faz-nos parecer pobres e Deus nos livre de parecermos pobres! Até o poderemos ser, de espírito, mas parece-lo materialmente é uma vergonha de que nunca recuperamos!

Atrevo-me a perguntar-lhe, caro leitor, já se está a sentir ruborizado, incomodado…ofendido? – Não se sinta sozinho, também eu já passei essa fase em grande parte alimentada pelos comentários jocosos de colegas ou até amigos. Amigos que nos gozam porque não temos “Iphone”, “Pandora” ou um carro novo. Amigos que talvez não percebam que, para nós, isso pouco importa e nos tornam, através de um litost bem conseguido, parte do freakshow que cada vez mais os indivíduos humanos formam: coitadinhos. Coitadinho de ti e coitadinhos deles!

E, sejamos sinceros, ninguém quer ser um coitadinho; todos querem fazer parte do público que aponta o dedo e numa interjeição tão vazia quanto o mesmo (“Ohhh…!”) expressa o sentimento, também ele vazio, ampliado em pena e desgraça e disfuncional o suficiente para que percam o foco de importância e realidade! – Vivem um teatro, um reality show para determinar qual o mais malfadado, o mais miserável, a maior vítima das coincidentes desventuras do fado que ninguém consegue controlar! Vivem um teatro e dormem sobre a verdade para que isso seja apenas uma catarse e nunca uma tomada de consciência e atitude para a mudança. Brindam, no final, com os discursos já aqui comentados e seguem a regra da solidariedade selectiva, do “espírito natalício”, da bondade “para inglês ver”.

Numa outra dimensão que carece de pés assentes no chão e contrato com a capacidade de sofrimento por, e do consequente controlo da língua e das verdades que deviam ser ditas (mas nunca são por bem parecer) para ser notada, os que têm fome têm-na todo o ano, os que têm sede, morrem de sede por todo o ano, os que precisam apenas de uma palavra amiga e uma réstia de humanidade continuam a entreter a solidão pelo resto dos dias do ano, sabendo melhor destas hipocrisias, conhecendo na pele estas solidariedades selectivas e sendo mais humanos que quem delas se usa e quem com elas se satisfaz.

Porque, caro leitor, a humildade faz-se na verdadeira pobreza e ainda existem coisas que o dinheiro não pode comprar, como por exemplo a paciência daqueles que sabem existir uma diferença entre ser rude e ser honesto e entre ser solidário e ser hipócrita.

 

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