23 Dezembro 2017      12:06

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SAUDADE

Um escrever sem pressas, uma palavra que se desenha como as nuvens se movimentam no céu, sem receio de não chegar a tempo. No céu azul, enquanto dura o dia, não há pressa, não há tempo. Na noite, com as estrelas, que se mantêm no mesmo lugar, vejamo-las seja de onde for, não há pressa, não há tempo.

Uma palavra sem rodeios, sentida em milhões de formas diferentes. Tantas quantas os que a pronunciam e escrevem e, mesmo aqueles que não sabem escrever, a ideia que dela têm, quando a pronunciam, transforma-se numa dessas nuvens brancas em fundo azul que brilha no céu e, às vezes, com sorte, deixa passar raios de sol e ilumina o rosto do pensador.

Saudade. Dois amigos que se encontram e se abraçam após tempos sem que os seus olhos se cruzem em tempo real. Saudade, amantes que se reencontram em cenário diferente daquele que conhecem todos os dias. Saudade, uma mãe que beija o filho e o abraço no pulsar mais forte do coração de ambos e no seio das lágrimas de felicidade que alimentam as veias de ambos. Saudade, um pai que vê o filho e o beija e o abraça. Um filho que vê o pai e se emociona, um filho que vê os que ama, avós, tios, primos e sente que está em casa.

Saudade, uma amarra invisível entre pessoas e entes que se conhecem e se estranham quando não sentem a presença. Num pátio, pintado a cal, o olhar profundo de quem espera na estrada a chegada de um carro. O olhar profundo de uma saudade que conhece a retina dos olhos e reflete as nuvens de que se falava, onde o tempo não passa. Nesse pátio, a brisa do vento que entra pelos ouvidos e sussurra a palavra que não necessitaria pronunciar. O seu significado existe ainda que dela não se unam as letras todas.

Saudade, sentada num pátio pintado a cal, olhar profundo focado na estrada e nos carros que imagina chegar. O imaginário sofrido pela ausência. Numa palavra, todo o conteúdo do sentimento pronunciado, abafado pelos lábios que o vulto no pátio pintado a cal, não deixa saírem. Olha, sem expressão, no rosto para a estrada onde os carros não passam nem param.

Sente-se, pelo escrever sem pressas que sobrevive ao cantar dos galos todos os dias e ao barulho da chuva, que o tempo passa tão devagar quanto pode, nas alturas em que esperamos notícias de lá ou mesmo das de cá que teimam em não chegar. O vento, esse só tem pressa quando nos chicoteia o rosto sem pena. Não é a brisa que nos sussurra a palavra saudade e nos sossega, fazendo acreditar que aquele abraço e aqueles beijos são reais e nos fazem perceber o sentido das palavras, mesmo quando não são ditas ou escritas.

Saudade, um livro que já foi lido e aguarda na prateleira o suave toque do leitor que por ele se apaixonou e o revisita, passando as folhas como quem lhe descobre o corpo e o acaricia. Nele as palavras que se repetem e confundem. Sente falta dos olhos que o percorram. Sente, na tinta das letras que, alinhadas em palavras, constroem mundos. Mundos tão largos como aqueles que a mulher ou o homem sentado naquele pátio, de olhos postos na estrada, esperam.

Saudade, uma roseira brava, vestida de picos que esperam as mãos, as que fará sangrar as que buscam a beleza rara, para tentar igualar um sorriso. No momento em que a oferecer, o reflexo do rosto da rosa indomada, o reflexo do olhar que a recebe.

Nas janelas do sentido, um escrever suave, sem pressas, a palavra saudade transportada no pensamento e salta de ideia em ideia, das pessoas com quem se cruza. Imagine-se, em todas as ideias, o sentimento. Talvez se possa dizer que não há em outras línguas, talvez se possa imaginar a sua caraterística de ser única. Não será certamente inexistente em outros lugares.

Onde houver um ser que se sinta só, conheça a distância e veja nas nuvens a passagem do tempo, existirá esse fluir de sensações, esse vazio que só se preenche no abraço e no cruzar dos olhares, dos odores conhecidos da outra pessoa.

Saudade. Correr uma maratona sem esperar que a meta, ao fundo, seja o final. Correr uma maratona pelo prazer de percorrer as ruas, no cumprimento de um objetivo próprio e, no seio do esforço, alcançar a meta. Em si, a saudade.

 

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