23 Setembro 2017      11:25

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POSTAS DE PESCADA

No Alentejo, antigamente, havia ursos. Já não há. Embora ainda haja em outros sítios do planeta, dizem. Confirma-se. Então é assim, antigamente, quando havia ursos no Alentejo, estes tinham personalidade. Tinham tanta personalidade que fazia impressão. Não havia forma de registar a personalidade dos ursos nesses tempos em vídeo, nem áudio. Era uma pena. Tudo era basicamente uma pena naquela altura e ao mesmo tempo bucólico e apaixonante.

Os ursos caminhavam livres pelos campos montanhosos das zonas onde viviam. E eram ursos felizes. Nem todos. Um deles, animal do sexo feminino, logo Ursa, era extremamente infeliz. Todos os dias se lamentava, uivando como quem lhe tirava bombons e rebuçados. Chamava-se Maior. Era a Ursa Maior. O marido era mais baixinho e por isso, embora o nome fosse Timóteo, tinham-lhe dado a alcunha de Urso Menor. Era uma piada entre eles que só os ursos perceberiam. Ora, naquela família alargada de ursos que viviam no Alentejo, mas nas zonas montanhosas, não havia as coisas que atualmente já existem.

Ursa Maior estava prenha. Esperava mais um ursinho que iria aumentar a família de ursos. Andava naquela fase de desejos. Tinha desejos por tudo. Ora um dia era ervas aromáticas específicas, outro dia salmão, à quinta e sexta lá se contentava com achigã ou carpas que se podem encontrar nos ribeiros e riachos do Alentejo. O pobre do Menor é que arcava com os maus-humores, com as exigências, com as respostas tortas, com os suspiros, com as discussões. E lá tinha ele de ir buscar os peixes e as outras coisas que a Ursa queria.

Um dia, assim do nada, refastelada no centro da toca onde habitavam, a Ursa sonhou que a sua vida ia mudar. Sonhou que iria ser rainha num concurso de beleza e que juntaria muito dinheiro, fazendo de si rica e tornando-a uma ursa ainda mais rica e ainda maior. O marido, coitado, dava o desconto quando ouvia os sonhos. Mas este fora diferente. Fora especial. Parecia uma profecia. Era simples. Para isso, o marido teria de fazer uma viagem ao mar e procurar um peixe chamado Pescada. Só esse peixe, consumido em forma de posta, seria a solução e a resposta. Ursa Maior passou dois dias a instruir o marido sobre a demanda. Queria porque queria postas de pescada.

Falava tanto que o companheiro, já chateado e com as orelhas a sangrar e o pelo a cair lhe disse que já estava farto de a Ursa mandar postas de pescada. Ficou ofendida e zangada, mas os miúdos ouviram e já se sabe que, naquelas idades, reproduzem tudo. Foram contar a toda a gente que a mãe mandava postas de pescada. A vizinha contou à cunhada e assim sucessivamente… sei que se generalizou em poucos dias.

A Ursa continuava com desejos e prenha. O Urso continuava a ouvir e tentar saciar os desejos da fêmea. Decidiu, já sem outro recurso, aceder ao pedido e ir ao encontro do mar. Na caminhada, lá foi perguntando pela pescada. Contava a história, ouvia umas gargalhadas dos transeuntes e, cabisbaixo, continuava em direção a Sines.

Dias depois lá chegou, no Porto, os homens que lá moravam, pescadores trabalhadores, acabados de chegar do mar. Ora, estafados, ao aportarem, viram um Urso sentado a olhá-los com avidez. Coisa nunca vista por ali, um animal daquele porte e com aquele feitio, despertou o pânico e toda a gente, aos gritos, fugiu. Ficaram os barcos e o peixe acabado de pescar.

A nossa personagem, Urso, sabendo em avanço que não voltariam tão cedo, olhou os peixes. Não reconhecia nenhum, mas lá optou por levar uma boa quantidade de cada. Um deles seria pescada. Fez-se ao caminho, deambulando entre montes. No caminho já ninguém ria. Chegou ao monte umas horas depois e entregou à companheira toda a pescaria. Que delícia, que encanto, que alegria. Era para ter sido assim, mas não foi. Ursa Maior estava com os humores, agarrou na pescada em posta e começou a atirar ao urso, pelo seu atraso. A vontade já tinha passado e o novo sonho dissera que era salmão e não pescada para ficar rica e ser deslumbrante, sem fazer figura de ursa.

O urso fugiu, debaixo de chuva de postas de pescada e, dizem, foi daí que veio a expressão mandar postas de pescada. Não tanto o ato físico, mas aquela coisa de urso quando fala. 

 

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