6 Março 2021      11:40

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Os corvos

Profusamente conhecidos na sua área profissional e de ação, os Corvos eram um marco na sua época. Não eram dançarinos nem senhores de guerra. Eram simplesmente um grupo de rapaziada gótica que adorava passear e passar o tempo a discutir coisas profundíssimas da filosofia internacional e nacional. Os Corvos viviam em cima das árvores e eram aves que se vestiam sempre de preto. A sua adolescência fora passada em conjunto, a partilhar coisas que poucos tinham sequer pensado ou refletido.

Muito eu gostava de ouvir as suas discussões e as conclusões a que chegavam. Nada do que concluíam era vazio ou sem nexo. Tal como a sua cor de penas, tudo era homogéneo e enquadrado. Os Corvos poderiam ter sido uma banda ou um grupo de mal-feitores, ou uma tribo mundo pós-apocalíptico. Talvez tenham sido. Creio mesmo que sim.

Estes corvos de que vos falo hoje tinham em si uma melancolia interna que impressionava os outros pássaros. A nostalgia da sua filosofia, o leve balançar das penas, num movimento que escurecia tudo em sua volta, parecia saído de uma cena cinematografia de Hitchcock ou mesmo de um livro de Allan Poe. Pois bem, os corvos poderiam ser famosos.

A sua melancolia fazia com que no, lugar onde viviam, todos os temessem, sem perceberem esse medo inconsciente. Os tons das penas aliados ao seu som, retirava-lhes a capacidade de serem entendidos no que mais profundo havia na sua essência.

Um certo dia, um deles foi atingido por um tiro e deixou de fazer parte das discussões em grupo. A sua perspetiva seria esquecida pois a sua filosofia nunca tinha sido escrita e os restantes membros pouco dela se lembrariam. Nem o seu nome seria recordado. O tiro trespassou-lhe as costas furando o coração e manchando de vermelho as suas penas, que até aí pareciam feitas de um negro quase azul, tornaram-se vermelhas e disformes.

Os restantes Corvos assistiram ao acontecimento absolutamente aterrorizados e de imediato dispersaram para diferentes lugares. Sem olharem para trás voaram incessantemente, cada um para seu quadrante.

O grupo de filosofia acabaria ali naquele momento em que o tiro silenciou a palavra. Não mais se juntariam a discutir coisas do interior e do exterior. Não mais as antíteses gerariam a unidade.

A morte tantas vezes gera a mudança radical. Tantas vezes a morte muda o rumo dos acontecimentos e das nossas vidas, seja essa mudança geográfica, psicológica, interior e exterior.

Os Corvos mudaram. Mudaram de sítio, mudaram a sua filosofia e o seu pensamento. Mudaram no interior e no exterior. A sua penugem perdeu brilho. Nos sítios onde pararam, não havia nada familiar. Os seus olhos estranhavam a paisagem, os seus bicos estranhavam as sementes e as frutas. Não era sequer possível encetar um diálogo com outras aves pois as línguas eram diferentes e imperceptíveis. Os Corvos haviam perdido o plural e eram agora apenas o Corvo. Como na lenda dos sete vimes, cada um deles era mais frágil sem o grupo que os suportava. Estavam sós e, num barco de 4 remos, quando estamos sós, não podemos remar. Faltam-nos as forças!

Todos os corvos acabaram por morrer nas terras onde pousaram exaustos, estrangeiros em países de aves que não falavam a mesma língua e que sempre os achariam uma ameaça pela cor das suas penas e pelos seus discursos filosóficos profundos mas imperceptíveis.

Bastou uma gota de sangue para que a vida de um grupo se multiplicasse em muitas vidas, menos uma, frágeis e inconsequentes.