26 Dezembro 2020      09:11

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O Natal está igual, nós não devíamos estar

Este ano foi inquestionavelmente marcado pela pandemia provocada pela Covid-19.

Tivemos uma fase inicial em que o mundo parou. Foram várias as reportagens a que podemos assistir e ver como locais normalmente marcados pelo rebuliço estavam vazios, sem gente, ninguém.

O medo estava instalado e parecia que estávamos a viver dentro de um filme de ficção científica. Cada ida ao supermercado era marcada pela mágoa da falta da normalidade que não valorizámos. Fomos obrigados à distância; a afastar-nos daqueles de quem gostamos, cuja presença damos por garantida, mas que de repente não estavam; nem eles, nem nós.

Aí, nesse momento, percebemos que o mundo não seria o mesmo. Que algo estava a mudar. E a esperança num mundo melhor foi inevitável. E, em parte, ainda é.

Nesse momento de medo, percebemos que estávamos todos no mesmo barco, que todos eramos iguais. Sobre isto, achei curioso um título da espanhola “Ethic”, com base num título de um livro de Daniel Innerarity: “Contra la pandemia… pandemocracia”. No livro, Innerarity diz que definição de democracia e em que todos os afetados por uma decisão devem poder participar dela e que, neste sentido, a crise provocada pelo coronavírus era um acontecimento pandemocrático. No entanto, o catedrático de Filosofia Política e Social basco assinala o paradoxo que o mesmo risco que nos põe em igualdade, revela em simultâneo o desigual que somos e que acabou por provocar outras novas desigualdades. Assinala que estas desigualdades podem mesmo pôr em risco a democracia ao abrir espaço aos populismos.

Quando se esperava mais união, mais solidariedade – e ainda foram muitos os exemplos – ela não existiu como deveria ter acontecido, pelo menos, não na dimensão necessária; nem entre as pessoas, nem entre os países.

A pandemia que devia unir, logo serviu para que muitos se tentassem aproveitar e conseguir retirar lucro fácil com a situação. Durante a pandemia, a fortuna dos multimilionários terá crescido 8,7 biliões de euros – segundo o “The Guardian - acentuando ainda mais o fosso e a disparidade entre quem mais tem e quem mais precisa.

O economista britânico Paul Collier, em entrevista à “Fronteiras”, disse que “Precisamos deixar de maximizar o lucro e curar as fraturas da sociedade". O especialista refere que o foco deve estar não no combate ao capitalismo, mas numa melhor administração, para que o foco deixe de ser a maximização do lucro e no curar das fraturas da sociedade, causadas pela desigualdade.

Neste ano de pandemia, a nova encíclica do Papa Francisco é também ela radical nas críticas sociais tendo visado diretamente a economia e o populismo; critica o consumismo, a globalização desumana, o liberalismo económico, a falta do direito aos bens comuns, a falta de empatia pelos imigrantes, entre outros, e refere que “O mercado sozinho não resolve tudo”.

Francisco diz que a pandemia mostrou que “Além das respostas diferentes dadas pelos distintos países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos hiperligados, houve uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam todos nós. […] O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os avanços tecnológicos, procurava reduzir os ‘custos humanos’, e alguns pretendiam fazer-nos acreditar que bastava a liberdade de mercado para que tudo estivesse garantido. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controlo e obrigou, à força, a voltar a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns.”

Que tem isto a ver como o Natal? Tudo. Este documento - sob o nome de “Todos Irmãos” (Fratelli Tutti) - é um hino à Fraternidade, sem fronteiras, numa visão inclusiva e integradora de todos; apela ao diálogo e à criação de uma cultura de encontro como base para uma sociedade pluralista, princípios que deviam ir além desta época.

Voltando ao artigo da “Ethnic”, Cristina Basili, investigadora da História do Pensamento Político da Universidade Complutense de Madrid, diz que «a democracia tem um truque na sua base e que é intransponível para os maus: o voto. (…) Está na nossa mão.»

Quer seja salvar a democracia, quer seja aplicar a fraternidade que Francisco apela, está de facto na nossa mão. Um por si só, e todos juntos num só. Como diz a máxima africana do Ubuntu: “Eu só existo porque nós existimos.” Este deveria ser o verdadeiro sentimento de Natal.

Em nome de toda a equipa Tribuna Alentejo, votos de um Feliz Natal para todos vós.