8 Julho 2017      12:15

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O INEXPLICÁVEL

"PARALELO 39N"

O rapaz escrevia como um verdadeiro legislador, embora não o fosse, nunca tivesse sido e não percebesse a mínima coisa sobre leis. Mas mesmo assim, descontente ora, relaxado outrora, escrevia coisas tão certinhas como as palavras dos diplomas legais.

Escrevia bem. Aprendera a escrever ainda antes de entrar para o primeiro ano do primeiro ciclo. Havia até quem dissesse que era sobredotado. Numa família de oito irmãos, não passaram despercebidas as suas aptidões, os seus veredictos ou até as mais básicas sugestões. Não se percebia muito bem o jeito, de onde o arranjara. Quem lhe dera geneticamente tamanha artimanha? Ninguém sabia. Tinha sido providência lá de cima, coisa nunca vista. E assim o rapaz foi, legislador até aos dezoito anos. Nesse mesmo dia em que atingiu maioridade, deixou de ter a capacidade empírica e racional de legislador e foram-se embora as técnicas que tinha. Já não escrevia como antigamente. Agarrava na caneta não saiam as palavras. Era como se a esfera da tinta não se quisesse agarrar à folha e a repugnasse. Já não deslizava a Bic na folha branca, como até aí.

A partir desse dia, entrou em depressão. Não falava com ninguém. Dos seus lábios não saíam ruídos, nem grunhos. Parecia que não conhecia as palavras. Não as conseguia pronunciar. Assim andou dias a fio. Andava já toda a família deprimida também perante a ausência de uma qualquer palavra solta. Um olhar submergido em qualquer coisa que não era específica. Vaga. Desligada.

Certo dia, muitos passados sem fonemas nem monemas, o rapaz, aos dezanove, mudou. O olhar submerso na ideia das águas salgadas soltou-se como o jacto de água que a baleia expele e apaixonou-se. Apaixonou-se tão perdidamente que nem as palavras antigas conseguiam condensar todos os sentimentos. Não o conseguiam reproduzir. Nada era tão mais lindo que os olhos do rapaz, o cabelo meio despenteado que era rebelde, ousado.

Apaixonara-se por uma árvore que nascera no mesmo dia que ele. Sem que nunca se apercebessem da existência um do outro, já ela dera frutos tantas vezes, mas as suas folhas que acariciavam o vento e que deixavam que o longo vestido castanho fosse presentado com as flores que caíam antes de nascerem os frutos. Havia outras árvores, pois claro que sim. Há sempre outras árvores mas nada nem ninguém consegue explicar por que razão se prende o coração a uma específica. Prendera-se àquela. Deixara que as raízes dele se juntassem às dela e o elo fosse tão grande que, como as lendas dos vimes, não se partiria. A ligação era imaginária. Não existia fisicamente, mas isso nem o amor existe na forma física ou a paixão, nem mesmo a atração física é invisível ao olho humano e ao microscópio.

Em resultado de o rapaz se encontrar enamorado e ter abandonado, antes, a fase racional, não escrevia já leis nem textos dogmáticos, carregados de pragmatismo. Começou, desde que as folhas despenteadas da árvore lhe tocaram o cabelo e lançaram o perfume meio cítrico para o seu olhar e esse aroma que o envolveu, a escrever poemas. Escrevia com tal voracidade como um homem louco, desvairado, ensandecido, avariado…enfim, apaixonado. Escrevia sonetos, tercetos, quadras, rima livre, versos brancos sem nexo. Escrevia tudo e escrevia nada. Já deixava que a sua caneta fizesse com a folha os algoritmos do amor, deixava nos versos a paixão platónica que o alimentava e hidratava, a coisa que ele não poderia ter da sua amada. O rapaz escrevia de forma voraz. Sentado debaixo da paixão rascunhava até adormecer, exausto.

Acontecera tudo tão rápido que nem os pais, nem os irmãos perceberam. Tudo se tornara o oposto do que tinha até aí sido disposto. Tudo era irracional. Tudo incapaz de ser explicado. Inexplicável. Mas no rosto adormecido do jovem, um sorriso delicioso como a fruta que caía da árvore que, desde que amada, mais doce. 

 

Imagem de leiaja.com